Resumo Quarup - Antônio Callado

Resumo do Livro Quarup de Antônio Callado.

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Resumo Quarup - Antônio Callado
Quarup

Edição nº8 - 06/08/99

Quarup

Profa. Esther Rosado

Antônio Callado, 1917-1997

"Nando já a cavalo mal ouvia Manuel Tropeiro. Sentia que vinha vindo a grande visão. Sua deseducação já estava completa. O ar da noite era um escuro éter. A sela do cavalo um alto pico. Da sela Nando abrangia a Mata, o Agreste e sentia na cara o sopro do fim da terra saindo das furnas de rocha quente. E viu: aquele mundo todo com sua cana, suas gentes e seus gados era Francisca molhando os pés na praia e de cabelos ardendo no Sertão.
- Manuel — disse Nando — eu vou para ficar."

Pequena biografia:

Nascido em Niterói no dia 26 de janeiro de 1917, Callado era filho de uma professora e de um médico. O pai foi poeta e jornalista. A mãe o incentivou a ler e a escrever histórias.
Embora cursasse Direito, concluindo o curso em 1939, jamais exerceu a profissão de advogado. Foi jornalista de sucesso, biógrafo, romancista e teatrólogo.

Em 1951, entrava para a literatura com a peça O fígado de Prometeu . Em 1964, após o golpe militar, foi preso e dividiu a mesma cela com Carlos Heitor Cony. Os militares achavam Callado um grande perigo porque ele, como jornalista, sempre se interessara por temas polêmicos: as ligas camponesas de Pernambuco ou a demarcação das terras do Xingu, prometida desde o governo de Getúlio Vargas.

Libertado, em 1968, servindo como correspondente do jornal O Globo, esteve no Vietnã; experiência nasceu o livro Vietnã do Norte. Em 1994 é eleito para a Academia Brasileira de Letras e passa a ocupar a cadeira nº 8, que pertencera a Austregésilo de Athayde. Morreu em janeiro de 1997.

Obra:

Teatro:

O Fígado de Prometeu ( 1951);
A cidade assassinada ( 1954);
Frankel ( 1955);
Pedro Mico ( 1956);
O colar de coral ( 1957);
O tesouro de Chica da Silva ( 1959)
Uma rede para Iemanjá ( 1961);
O tesouro de Chica da Silva ( 1959);
Forró no Engenho Cananéia ( 1964);
A revolta da cachaça ( 1983).

Romance:
Assunção de Salviano ( 1954);
A madona de Cedro ( 1957);
Quarup ( 1967);
Bar Don Juan ( 1971);
Sempreviva ( 1981);
A expedição Montaigne ( 1982);
Reflexos do Baile ( 1976);
Concerto carioca ( 1985);
Memórias de Aldenham House ( 1989);
O homem cordial ( 1994).
Obras diversas:
Esqueleto na Lagoa Verde ( 1953);
Retrato de Portinari ( 1956);
Os Industriais da Seca ( 1959);
Tempo de Arraes ( reportagens, 1964);
Vietnã do Norte ( 1977),
Passaporte sem carimbo ( 1978).

Onde encaixar Quarup?

Numa visão tradicional e cronológica, o romance e o autor devem ser encaixados na Terceira Geração Modernista ( de 45 aos dias atuais).
Em vez de especulação ou intimismo, no entanto, podemos considerar Quarup como "literatura engajada"e de denúncia, tal como a de João Cabral de Melo Neto em seu livro Morte e Vida Severina, também indicado pela Unicamp.
Quarup é antes de tudo uma denúncia, um grito, um alerta. Ou uma bela lição de História do Brasil.

Sobre a obra:

Callado não consta ( ainda!) da maioria das antologias literárias para estudantes do segundo grau e isso é incrível e imperdoável, em se tratando de escritor fundalmentalmente importante na literatura brasileira atual.
Quarup ( 1967) é seu mais conhecido romance, embora o autor sempre tenha declarado que sua preferência pessoal era por Reflexos do Baile ( 1976). No entanto, a crítica é unânime ao apontar Quarup como o mais exemplar entre todos os romances produzidos pelo autor.

Quarup virou filme, em 1989, dirigido por Ruy Guerra, mas nem pode ser comparado ao Quarup-livro, chance perdida pelo cineasta de fazer um grande trabalho a que o romance e Callado faziam jus. Pena.
Foco narrativo:
Quarup possui foco narrativo em terceira pessoa e seu narrador é onisciente, uma vez que penetra o "lado de dentro "de suas personagens, invadindo a intimidade de seus pensamentos, revelando ao leitor o mundo interior de cada uma delas.

"Nando tinha cartas de Francisca à sua espera. Foi tirando dos envelopes as cartas e segurou-as nas palmas abertas como se fossem azulejos. Sua primeira idéia foi colecioná-las em número suficiente para forrar as paredes da casa. Não tanto pela escrita regular em tinta azul no papel branco: o que contava era o cozimento da ternura esmaltando as folhas. ( ... ) "Foge para mim, Nando. Ficar aí é adiar a vida da gente. Principalmente a minha. A nossa...

Eles estão facilitando o asilamento e fuga de todos os que estiveram presos. Foge para mim, Nando, eu sei que para você eu valho uma pátria, não valho? " Valia, valia todas as pátrias, valia o risco de uma vida duvidosa na Europa, da procura de sabe Deus que emprego. Tudo era preferível a saber Francisca longe e a chamá-lo com insistência e ignorar esse chamamento. Nando planejou embarcar de navio, mas a Polícia recusou-lhe o passaporte. Estava amarrado ao IPM do PC da Liga. Não podia deixar o país." ( A palavra, Parte V, p. 391)

Observe que o texto acima assinala também a presença do chamado discurso indireto livre, que tem como pressuposto o narrador onisciente em 3ª pessoa ( o trecho está sublinhado).
Nas narrativas onde aparece o discurso indireto livre pode ser verificada uma aproximação intensa entre o discurso do narrador e o fluxo do pensamento da personagem.
O romance está organizado estruturalmente em 7 partes, assim divididas sob a forma de 7 enormes capítulos:
1. O Ossuário;
2. O Éter;
3. A Maçã;
4. A orquídea;
5. A palavra;
6. A praia ; e
7. O mundo de Francisca.

Tempo:

O tempo narrativo, que permeia os 7 capítulos, é o cronológico e as ações acontecem num período de dez anos: inicia-se no governo Getúlio Vargas eleito pelo voto direto , na década de 50 e termina em 1964, em pleno governo militar, logo após a deposição de João Goulart e o início das torturas e perseguições por parte da junta Militar presidida por Castelo Branco.
Esses dez anos são o cenário brutal de um tempo duro para o Brasil, um tempo amargo, difícil , em que os homens, quer das Ligas Camponesas, quer pós golpe militar, tiveram que viver a carne viva de seus sonhos.

Espaço:

Os espaços narrativos são Pernambuco, onde se inicia a ação, Rio de Janeiro, para onde Nando se desloca em busca de ir para o Xingu, e o Xingu esquecido das autoridade, sobretudo Getúlio Vargas, que prometera demarcá-lo.
As sete partes do romance:
1. O ossuário

A personagem protagonista, padre Nando, é apresentada ao leitor no ossuário, enquanto medita no Mosteiro perto do Recife. Lá os frades franciscanos mortos esperam pelo Juízo Final:
"De costas para Nando e muito próximos de Cristo, seis franciscanos imóveis, três de cada lado, cabeças baixas cobertas do capuz. Enfrentavam a lei. E para eles não havia misericórdia. Eram a cabeça de duas filas de monges que aguardavam sua vez no juízo final. Estavam todos imóveis, imóvel estava o Cristo como se de súbito se introduzisse nos trabalhos uma alteração importante.

Começara um julgamento sem dúvida mais grave. Era Nando que subia entre as duas filas de franciscanos. Subia. Cresciam diante dos seus olhos a balança, a escala, os cutelos, os duros pratos prontos a reagirem a um frêmito de culpa. Enquadrado, dividido pelas linhas da balança, Cristo crescente para nando caminhante. Cristo duro. Balança ele próprio. Cristo matemata. Nando ultrapassou os que eram julgados diante da balança, ultrapassou a balança, colocou-se ao lado direito do Cristo e mirou em frente.

Os capuzes cobriam caveiras e na mão dos frades os rosários se prendiam a metacarpos e falanges. Eram esqueletos de frades em julgamento. Era atoda a imensa cripta em frente, prolongada num corredor que morria em trevas, havia ossos empilhados e prontos a se reorganizarem em esqueletos vestidos de burel mal soasse para cada frade a trombeta da chamada.."
Surpreende-se com a presença de Levindo entre os esqueletos. Ferido na mão por um tiro de rifle dado por um usineiro, o militante político tinha vindo parar no ossuário procurando abrigo:

"- Cuidado, Levindo — disse Nando — Violência é coisa que quem procura encontra sempre.
• Graças a Deus — disse Levindo.
• O tiroteio foi por quê?
• Esse usineiro Zé Quincas, da Usina Estrela, é o mais poderoso e o mais safado de todos eles. Se a gente conseguir curvar essa peste os outros vão ver que a coisa não é mais brincadeira. Eu fui lá com um camponeses que entraram para o sindicato e foram despedidos. Voltei com eles, que queriam desafiar Zé Quincas criando um caso como o de hoje. Fui ajudar eles a fazerem casas nas terras da Usina. Eles têm direitos adquiridos, que diabo.
• Fazerem casa na terra dos outros?
• Toda terra em Pernambuco é dos outros. Eu sabia e os camponeses sabiam que a Polícia, que também é dos outros, acudia logo para desmanchar as choupanas. Dito e feito."

Francisca, noiva de Levindo e moça da classe alta, estudante de pintura, tinha falado na cripta com entusiasmo, estava pretendendo fazer lá uns desenhos nos azulejos que retratavam a vida de Santa Teresa D'Ávila. Nando medica Levindo, fazendo-lhe um curativo na mão.
O narrador antecipa o futuro narrativo nos faz ver que Nando já conhecia Francisca ( "Desde que D. Anselmo lhe dera permissão — mais do que isto, lhe ordenara _ que saísse do Mosteiro, que fizesse relações com gente do mundo, Nando só tinha encontrado uma paz séria e tranqüila em Francisca, noiva de Levindo. O mais era desmembramento, o mundo entrando em filetes de distração por todas as frinchas da fortaleza que ele fora antigamente. A convivência com seus amigos ingleses era, sem dúvida, estimulante mas agora o levava quase ao desespero, de tanto que tirava de dentro de si mesmo.") e nos aponta também o casal "de ingleses", amigos de Nando: Winifred e Leslie, missionários na região. Anglicanos, os dois mudariam também e para sempre o mundo e os conceitos do jovem padre.

No dia seguinte, Francisca aparece no claustro ( ossuário):
"- Já sei. Está espantado de ver uma mulher no claustro.
Francisca brandiu um papel que tinha por baixo da tábua de desenho com o grande pregador de metal de firmar as folhas.
• D. Anselmo me deu um salvo-conduto para desenhar os azulejos de Santa Teresa.
• Ah, muito bem — disse Nando — uma invasão legalizada.
• E pacífica. De mais a mais Teresa de Ávila era uma mulher . Por que há de ficar seqüestrada entre homens? Ou entre santos, se fosse o caso."
É assim que nossa narrativa se inicia. Nando é um jovem padre que, com medo dos apelos do corpo físico, tenta adiar sua ida ao Xingu, a fim de catequizar os índios. Teme os apelos sexuais, a visão das índias nuas e evita dizer a D. Anselmo que se dispõe a estar entre aqueles seres. Não diz os motivos, mas adia a ida.

Através de Levindo e Francisca, por quem descobre estar apaixonado, através, ainda do casal de missionários e da insistência de D. Anselmo para que se aproxime do mundo "lá fora", Nando entra em contato com o mundo exterior e seus inúmeros problemas: o aparecimento das Ligas Camponesas, a violência dos donos da terra e do poder, a miséria e até de um caso de estupro seguido de gravidez e de aborto: Maria do Egito, uma camponesa, é violentada pelo capataz da fazenda; o pai avisa que se houver dentro dela a semente daquele homem, a matará, bem como ao agressor. Grávida, Maria recebe a proteção de Winifred e Lesley que a levam para abortar.
Aos poucos, o padre Nando se instala no mundo. E a fúria da carne e dos desejos lhe sobrevém com força.

Januário, um militante político que pretende arrebanhar os padres a favor da causa dos camponeses , convida Nando a participar de uma reunião da Sociedade dos Plantadores. É a contragosto que Nando vai, mas começa a descobrir o universo circundante, a força dos homens simples e a simpatizar com a causa que defendem.
Nos dias subseqüentes, o padre encontra-se muitas vezes com Francisca: ela mostra a ele uns desenhos dos índios kadiuéu e diz estar disposta a ilustrar um futuro livro que Nando poderia escrever sobre eles, em sua missão no Xingu.
Levindo quer casar-se com Francisca, planeja passar a lua-de-mel no Xingu e é advertido por Winifred que o acusa de tomar decisões unilaterais sobre o casamento. É interessante notar aqui que o narrador supervaloriza as relações que partam do princípio que ambos, no casal, devem tomar, conjuntamente, decisões.
O poder do "comunismo"na região incomoda D. Anselmo que pergunta a Nando sobre o que ele acha do assunto. Nessa ocasião, D. Anselmo relata também que o Major Ibiratinga , fiel da Igreja, anticomunista e fanático pelo catolicismo, tinha pedido a ele a adesão de todos os padres à sua causa . E, ainda, dá a entender a Nando que o major desejava saber quem estava envolvido com os camponeses, sugerindo que se rompessem os segredos da confissão.

Nando se aproxima de Leslie e Winifred. Admira-os pela maneira livre de pensar e julgar o mundo dos homens. Discutem sempre política e religião e se encanta quando Leslie lê para ele trechos do sermão em louvor de Nossa Senhora do Ó.

Maria do Egito torna-se prostituta para grande pesar de Nando que não entende o ocorrido. Levindo, que encontrara emprego para o pai da moça, despedido do antigo engenho, explica ao padre que só filha "moça" pode ficar na casa do pai. As molestadas, portanto, se sentem banidas do contexto social e procuram , invariavelmente, "fazer carreira nos prostíbulos".
Francisca diz ao jovem padre que deverá partir para a Europa, a pedido do pai, a fim de que esqueça de vez Levindo. Antes de partir, nesse mesmo dia, Francisca esboça um retrato de Nando e promete terminá-lo quando, no futuro, ambos se encontrarem no Xingu.
"Estou de partida para a Europa — disse Francisca — Vim lhe dizer adeus.
• De partida para a Europa? — estranhou Nando — Mas assim de repente?
• Uma espécie de trato que fiz com papai, que não gosta da lua-de-mel no Xingu — disse Francisca — Como Levindo vai viajar meses pelo interior do Estado, pela Paraíba e não sei mais onde, em companhia de Januário, eu aproveito este tempo e viajo de novo com papai.
(...)
• A esperança de papai é de que na Europa eu desista de casar com Levindo, que eu encontro algum namorado por lá e esqueça o do Brasil. Ele não sabe como eu sou constante, de amor como de planos."
Aturdido pela partida de Francisca, Nando procura o casal de amigos anglicanos. Mas outra perda se anuncia:
"- Você está certo de que deseja falar mesmo, Nando? Esperamos Winifred e depois saímos para jantar os três, num lugar sossegado. Sabe, Nando, não é só Francisca. Nós também vamos partir em breve. É provável que jamais nos vejamos de novo."
Mais aturdido ainda, o padre confessa-se ao amigo anglicano:
"-Escute, lelie — disse Nando falando de um jato. — Você vai ter a honra duvidosa de ser a única pessoa a saber por que não segui ainda para o Xingu. Nem D. Anselmo sabe. Só você e o meu confessor. Tenho medo de me defrontar com as índias nuas.
• Medo de quê? — disse Leslie.
• Da nudez das índias. Das índias sem roupa.
Nando viu Leslie sem saber em que expressão compor os músculos da cara. Para não sorrir. Para não rir.
• Medo. Certeza de que perco os sentidos. Ou me atiro a elas. Medo. Medo.
Depois de se confessar ao amigo, Nando fica doente, com uma infecção terrível e Leslie acaba por , com a aquiescência de D. Anselmo, para se recuperar em casa. Winifred e ele cuidariam de Nando.
Aos poucos, vai se restabelecendo, e discute com Winifred. Os dias passam e Leslie sai para visitar os camponeses, Nando fica a sós com Winifred que resolve pedir desculpas ao amigo pela forma rude que o tratara durante a discussão:
"A maçaneta da porta girou sem que batessem. Winifred entrou. Fechou a porta apoiando-se contra ela.
-Vim lhe pedir perdão, Nando.
• Ora essa — disse Nando levantando-se. — Amigos são para dizer as coisas.
Winifred aproximou-se dele, sorrindo, braços abertos. Como se fosse me abraçar, ia pensando Nando. Não pensou até o fim porque era. Abraçou-o.Depois de homem, fora de pai e mãe, Nando jamais vira outro rosto tão perto do seu. Winifred passou primeiro as Mãos pelos cabelos de Nando. Depois beijou-o na boca. E boca contra boca até sentir os braços de Nando que a envolviam também. Num relance, diante do abismo que se abria Nando protelou todas as objeções."

E se amaram, Winifred nua na cama, Nando era como se aprendesse a ver uma mulher nua na sua frente. Uma espécie de deusa nórdica, branca, branca, uma amazona, um ser indomável para quem não haveria mistérios, barreiras, proibições, pecados.
Mas Nando pensou em Leslie. E , desesperado, ainda abotoando a batina, pôs a caminhar pela praia. A linda Winifred ensinara a ele o gosto do prazer que o jovem padre jamais experimentara.
Ao chegar no Mosteiro, procura D. Anselmo e anuncia:
"- Venho dizer a Vossa Reverendíssima que estou pronto a partir para o Xingu.
D. Anselmo abriu os braços para o céu e para Nando e bradou com seu vozeirão:
_ Que Deus seja louvado!"


Encerra-se , assim, a primeira parte do livro.
Já analisamos uma primeira parte de Quarup , de Antônio Callado e salientamos que, estrutural e tematicamente o livro se divide em 7 partes:
1. O Ossuário;
2. O Éter;
3. A Maçã;
4. A orquídea;
5. A palavra;
6. A praia ; e
7. O mundo de Francisca.

Ao analisarmos O Ossuário , verificamos narrador, tempo, espaço, personagens. Antes de entrar para a Parte II desta análise, é bom que você saiba um pouco sobre a cerimônia do Quarup e o que ela significa. O trecho que você vai ler foi escrito pelos sertanistas Orlando e Cláudio Villas Boas e encontra-se no livro Xingu — os Índios, seus mitos, pp 57-58 ( Ediouro, 1975):
Mavutsinim: O primeiro homem
No começo só havia mavutsinim. NInguém vivia com ele. Não tinha mulher. Não tinha filho, nenhum parente ele tinha. Era só.
Um dia ele fez uma concha virar mulher e casou com ela. Quando o filho nasceu, perguntou para a esposa:
• É homem ou mulher?
• É homem.
• Vou levar ele comigo.
E foi embora. A mãe do menino chorou e voltou para a aldeia dela, a lagoa, onde virou concha outra vez.
_ Nós — dizem os índios — somos netos do filho de mavitsinim.
Mavutsinim: o primeiro quarup, a festa dos mortos
"Mavutsinim queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros da madeira de kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara. Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e a cutia ( dois de cada), para cantar junto dos kuarup. Na mesma ocasião, levou para o meio da aldeia peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp ( cantadores), sacudindo os chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos kuarup, chamando-os à vida. Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira como eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus do kuarup iam-se transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive. Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos enquanto fazia isso. Todos gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos. O pessoal, então, quis chorar os kuarup, que representavam os seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, sizendo que eles, os kuarup, iam virar gente, e por isso não podiam ser chorados.

Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os kuarup. "Ninguém pode ver", dizia ele. A todo momento Mavitsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse segundo dia, os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de penas tremiam também. As penas mexiam como se estivessem sendo sacudidas pelo vento. Os paus estavam querendo transformar-se em gente. Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar. Os cantadores — os cururus e as cutias _ quando os kuarup começaram a dar sinal de vida cantaram para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam plantados, queriam sair para fora.

Quando o dia principiou a clarear, os kuarup do meio para cima já estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e acabeça. A metade de baixo continuava pau ainda. Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. "Espera... espera... espera", dizia sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços dos kuarup estavam crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira. Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou de fora, junto dos kuarup . Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos kuarup. O pessoal, então, começou a sair de dentro das casas. Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relações sexuais com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não aguentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez. Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: "O que eu queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os kuarup teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse kuarup."Mavutsinim, depois de zangar, sentenciou:
_ Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quando se fizer kuarup. Agora vai ser só festa.
Mavutsinim depois mandou que retirassem dos buracos os toros de kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites, mas mavutsinim não deixou. "Tem que ficar assim mesmo.", disse. E em seguida mandou que os lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão até hoje lá, no Morená."

Parte 2. O Éter:
Nando, com as bênçãos de D. Anselmo parte para o Rio de Janeiro de onde tomaria um avião para o Xingu. Simples assim? Não. Existe aqui um corte temporal que indicará ao leitor estar o padre naquela cidade há algum tempo — uma semana - , à espera do avião da Fab. Outras personagens serão apresentadas ao leitor neste episódio, todas de qualquer forma ligadas ao SPI ( Serviço de Proteção aos Índios): o jornalista Falua ( Luís Souto); o chefe Ramiro Castanho e sua sobrinha - e secretária — Vanda; Sônia, a mulher por quem Ramiro está apaixonado ( ela é amante de Falua); Otávio e Lília, casados e comunistas; Fontoura, sertanista e chefe do posto Capitão Vasconcelos, que fica em pleno Xingu. Enquanto isso, participa de porres de lança-perfume. O corte temporal reside aí, é a partir de um desses "porres"( prises) que se inicia a segunda parte do livro. O "éter" você agora já sabe o que é...

"Ao umedecer de novo o lenço para não interromper o bem-estar e a sensação de poder, Nando lançou um olhar aos companheiros e viu que todos ressonavam. Ramiro no sofá, lenço chapado na cara como um alegre morto, Vanda, Falua e Sônia cada um numa poltrona, lenço no colo e bisnaga abandonada no assento. Antes de aspirar o lenço gelado, Nando viu na mesa um único abajur aceso ao seu lado, a bisnaga de vidro brilhando com um esplendor de diamante, palpitando como o revólver de Hosana. Entendia tudo e tinha nas mãos vida e morte. Não ia perder tempo fixando naquele instante ciência tão inesquecível. Cheirou guloso e a plenos pulmões a friagem perfumosa. Dzim-dzim-dzim nos ouvidos. Altos muros ruíram em silêncio e cores fulguraram em negrume de azul e pasta de escarlate. Aprendiz no estúdio de um pintor antigo, Nando tinha caracóis escuros que lhe caíam sobre a testa, borzeguins vermelhos de pontas reviradas, pincel na mão e um sorriso de mofa nos lábios infantis. (...)
E de repente a cessação completa de imagens. A sala, Ramiro no sofá. Vanda, Falua e Sônia nas poltronas. O abajur. O lança-perfume de vidro cintilando com a ciência de tudo. Não mais delírio das imagens. Ao contrário."
É assim que se inicia a segunda parte: Nando é mostrado ao leitor em meio a um porre fenomenal de lança-perfume, em meio aos outros componentes do grupo. Com a chegada de Otávio, Nando se envergonha. As pessoas comentam as imagens decorrentes da "prise". Otávio convida Nando para irem à Taberna da Glória, onde deixara Lídia.

Na rua, vêm o grupo que se senta na sarjeta e é surpreendido por policiais civis. Nando se esconde, Otávio livra a cara dos amigos. O padre vai para a pensão onde se hospeda e o grupo se dirige à Taberna.
"Apesar de estar acordando tarde para os seus hábitos, Nando se espreguiçou ainda cheio de sono, anestesiado, confundindo lembranças de éter e realidade. Nunca mais aceitaria convites de Ramiro Castanho. Como Otávio tinha muito bem sugerido, por pouco ele não se desmoralizava de forma irremediável na véspera. Tinha chegado ao Rio uma semana antes, deixado a mala no hotelzinho conhecido de D. Anselmo e tocado para o Serviço de Proteção aos índios. Apesar das cartas escritas antes de sua viagem, pelo próprio D. Anselmo, ao Ministro Gouveia, da Agricultura, e ao Diretor do Serviço de Proteção aos Índios, Ramiro Castanho, Nando sabia que não encontraria todos os problemas resolvidos e sua viagem para o Xingu arranjada. Mas entre isto e ir diariamente ao Ministério e ao SPI sem conseguir ver nem o Ministro e nem o diretor do Serviço ia uma longa distância. Vanda, a secretária do Diretor, é que lhe havia ensinado paciência.

Aliás, secretária e sobrinha, como Nando viria a saber da terceira vez que foi procurar Ramiro no serviço."
Ramiro, o padre fica sabendo através de Vanda, jamais tinha visto um índio de perto. Nascido na Zona Sul do Rio, detestava a selva:
"- Aqui entre nós dois, que ninguém nos ouça, titio acha esse negócio de índio o fim. Mas o Fontoura chega amanhã e ele vai colocar o senhor aos cuidados do Fontoura.
• E quem é esse?
• É o chefe do SPI no Posto Capitão Vasconcelos.
• Ah, sim, bem na zona em que queremos fundar a nossa Prelazia — disse Nando."

Fontoura é um homem bom, mas beberrão e incréu:
"- Vejo — disse Fontoura. — Sempre achei uma besteira esse negócio de pendurar com barbante em pescoço de índio uma Nossa Senhora Auxiliadora de alumínio.
• Bem, Fontoura, vamos devagar com o andor — disse Ramiro brusco. — Os padres são gente séria e fazem trabalho importante no mundo inteiro. O que a gente tem que ver é que espécie de ajuda eles podem nos dar e que ajuda nós podemos dar a eles. O que queremos, eles e nós, é servir o indígena."
Apenas palavras. Fontoura sabe disso e o padre Nando provaria mais tarde...
"- O senhor não aprecia muito esse tipo de vida _ sorriu Nando.
Ramiro se formalizou, ajeitou o colarinho.
• Padre Fernando, não se iluda. Eu sou um servidor público e conheço minhas obrigações. O senhor terá todo o apoio de minha parte e do Ministro Gouveia. Mas aqui entre nós, que podemos confiar um no outro, viver no mato é vida de bicho. É duro, padre, depois de milênios de evolução, a gente dedicar a vida a uns caboclos que ainda nem inventaram a machadinha decente. Quando vêem uma machadinha de loja de ferragem os índios lambem os beiços. Mas o senhor gosta daquilo, pelo jeito.
• Ah, espero dedicar minha vida a eles — disse Nando.
Ramiro se levantou.
_Pois quando o senhor estiver instalado no Xingu vou visitá-lo, disse Ramiro."
No jantar da casa de Dr. Ramiro, o ministro Gouveia promete a Otávio que Getúlio iria comparecer ao Xingu para inaugurar o Parque durante o Quarup, festa tradicional do povo daquela região, espécie de celebração dos heróis mortos e louvação de uma espécie de Adão indígena que se encarregaria de trazê-los de volta à vida, sob ritual que incluem troncos pintados que os representam.
Todos cheiram éter, lança-perfume.
No dia seguinte, quando o padre chega ao Ministério, Vanda está envergonhada.
Fontoura volta ao Xingu, mas Nando ainda permanece no Rio à espera de um outro avião que possa levá-lo ao Posto no meio da selva.
Aos poucos, o padre vai ficando íntimo de Vanda: tornam-se amantes:
"- Entre, Nando, entre. Foi bom você ter vindo. O Tal conta-gotas que tio Ramiro te deu está aqui, comigo. Aproveite e leve-o.
• Você está sozinha, Vanda?
• Na maior solidão. Os meninos foram para o colégio e eu acabei de me aprontar para sair. Quero fazer umas comprinhas na cidade antes de ir para o Ministério.
Ela estava pronta e ninguém diria pela sua cara que a noite ainda tão próxima fora longa e acidentada. Lavada, pintadinha de leve, blusa branca muito engomada e saia escura, cabelo ainda úmido, parecia uma andorinha, Vanda.
-Meu bem — disse Nando tomando-a nos braços.
• Senhor! — disse Vanda rindo. — Agora não, Nando, vou chegar atrasada se começarmos com isso.
Cheiro de beijoim, gosto de batom fresco, pele macia de banho, blusa cheirando a quarador.
_ Você está me amassando toda — riu ela.
E depois:
• Está bem, neguinho, vem. Desmancha a roupa que eu acabei de vestir, desmancha a cama que eu acabei de fazer, desmancha tudo, meu anjo.
Melhor teria sido não ir, pois quem se desmanchou foi ele próprio, Nando apressado e já agora nas garras da nova angústia. A prova real assim tirada, Nando sentiu, para consolo seu, menos culpa no burlar seu voto de castidade. Usando de cautela, como Labão quando experimentava Jacó, o Senhor lhe permitira acesso à mulher. Mas lhe reservara uma surpresa. "
Ficou freqüentador assíduo do pequeno apartamento de Vanda. Aproxima-se da psicóloga Lídia e dos outros.
Finalmente, parte para o Xingu num avião do Correio Aéreo Brasileiro. Vanda vai acompanhá-lo ao aeroporto, quase chora:
"- Até o Quarup — disse Vanda.
-Até o Quarup — disse Nando."
Éter, é, portanto, um dos círculos de purificação por que Nando teria que passar. É ali que ele testa a paciência, seus impulsos de homem, seus deslizes morais. É como se fosse um rito para o que, no futuro, acontecerá.
Leia o trecho do depoimento de Antônio Callado sobre "Por que escrevo?"
"Acho que escrever é a idéia de sobreviver"
"O grande orgulho do escritor - marxista ou não marxista - é ganhar a vida escrevendo. Não tenha dúvida: esse é o maior orgulho que o escritor pode ter. Gostaria de ter dito a você como certos grandes escritores: "Vivo exclusivamente de meus livros." É uma glória, é uma coisa importante. Então você sente que é muito profundo; você quer viver daquilo, você quer ser escritor. Sei lá, é uma vocação, que considero uma coisa muito forte, quase física. No entanto, "por que é que eu escrevo?", "Para que é que eu escrevo?". Eu começo a ficar muito perdido, porque eu não sou um homem, por exemplo, muito político do ponto de vista partidário, mas muito ideológico, sou muito ideológico.

Então eu sinto que em tudo o que eu escrevo transparece a minha ideologia. Acho muito difícil não transparecer o que eu penso. O que acho da vida em geral, talvez sobretudo em relação ao Brasil. Mas é esse o meu motivo de escrever? Certamente, não. Nesse sentido, eu me sinto muito mais poderoso quando me manifesto como jornalista. Não há a menor dúvida. Um artigo meu, violento, claro e nítido, é muito mais satisfatório do que botar isso na cabeça de um herói meu dentro de um livro. Então é por isso que eu escrevo? Não! É por pura vaidade, pela idéia de que o escritor é um ser especial que consegue mais do que os outros, como uma coisa meio mágica. Sim, porque a escrita literária é invariavelmente mágica. Estou convicto de que os principais escritores de nossa devoção são escritores muito mágicos, escritores que criam, muito independentes de tudo. É isso então: possivelmente a gente está querendo emular estes grandes escritores; o escrever é muito ligado à idéia da glória. Acho que escrever é a idéia de sobreviver. Realmente, outros motivos me parecem insuficientes. Acho que é o duro desejo de durar."

Parte III — A Maçã
O capítulo recebe o título de A Maçã por causa de uma brincadeira que é feita por Fontoura com o padre Nando, a pedido de Lídia:
"O Lodestar pousou.
• Chegamos — disse Olavo.
• A porta do avião foi aberta, o piloto saltou. Nando também saltou atrás dele.
• Engraçado — disse Nando — pensei que os índios mansos dos Postos corressem ao encontro de aviões chegados.
• Homem, olha que correm mesmo — disse Olavo — Nunca tive uma recepção dessas na minha vida. Vêm os índios e vem gente do Posto também. Que diabo! Não é todo dia que chega avião neste cu do mundo não. Faz o seguinte, Padre Nando, Vai andando até a casa do Posto e vê quem está lá. Os doidos dos índios são capazes de estar pescando em massa para o quarup ou coisa parecida. Mas há de ter alguém no Posto. Eu vou desembalando a carga.
• Está certo — disse Nando — vou. Mas as mulheres também saem pra pescar?
• Não. Nem as crianças. Isto é que está me intrigando, este silêncio. O Posto tem estado sem rádio . Não há de ser nada."
• Não há possibilidade de alguma violência por aqui, há?(...)"
Nando fica amedrontado, mas segue em direção ao Posto:
"Nando, mala na mão, meteu o pé no caminho, ansioso pra ver os primeiros curumins correndo ao seu encontro, atirando-se aos seus braços. Queria apertá-los contra o peito para sentir o cheirinho que bem sabia que tinham, de terra, de água do rio, de jenipapo e de urucum. Enquanto aguardava, ia engolindo pelos olhos e pelo nariz as várzeas, as manchas de mato. E aquilo? Jatobá de índio fazer canoa? E adiante? Os buritis de índio fazer tudo? Monstro de pau linheiro. A hiléia crescendo medonha para o equador. Agora, quebrando à esquerda rumo à casa do Posto, as malocas, abauladas, acocoradas no chão, com sua porta móvel , e de varas e de palha. A um canto, na sua gaiola de varas, a grande harpia melancólica que dá plumas à tribo.
Mas ninguém. Ninguém no terreiro. Ninguém à beira do rio. Ninguém diante de qualquer maloca que fosse. Ninguém em parte nenhuma. Nando foi andando para a construção do Posto com o coração batendo fundo, a longos intervalos.

Que castigo seria aquele, Senhor? Que poderia ter acontecido? Que esconderia a porta do telheiro, por trás da sua varanda onde havia redes? Redes, mas vazias. Todas vazias."
O trecho acima nos mostra, também, que o narrador, além de onisciente, ostenta na narrativa o discurso indireto livre. Como se pode observar isso? Nas seqüências interrogativas em que, visivelmente, pode-se observar o pensamento pleno da personagem Nando ; nelas, há uma "mistura" do que o padre sente, indagando, com aquilo que o narrador conduz.
A surpresa preparada por Lídia, com o auxílio de Fontoura, é a recriação do mito de Adão e Eva. Observe:

"Estava Nando a uns vinte metros quando de dentro da casa saiu um casal de índios. Um belo casal de índios. Seu primeiro casal de índios. Ela apenas com seu uluri, ele apenas com um fio de miçangas na cintura. Deram dois passos pra fora da casa. Voltaram-se um para o outro. Nando, que estacara, viu então que a mulher tinha na mão direita uma maçã, que oferecia ao companheiro. O índio fez que não com a cabeça. Ela mordeu a maçã. E, então, virando-se para Nando, foi lentamente andando em sua direção, a maçã na mão estendida em oferta. Nando, confuso, pôs a mala no chão, estirou a mão.
Uma risada estourou atrás de Nando, outra ao seu lado, e das malocas saíram em chusma índios rindo e gritando, homens e mulheres e crianças. Agora, sim, Nando se viu no meio de uns cinqüenta índios.

A mão de Olavo, que rira atrás dele, caiu-lhe afetuosa no ombro.
• Desculpe o mau jeito. Mas o Fontoura me fez prometer que eu lhe ajudava a pregar uma peça. A peça , aliás, foi encomendada por Lídia, do Otávio.
• Peça? Me pregou um susto danado, isto sim. Primeiro pensei que tivesse morrido todo o mundo. Depois... nem sei!"
É dessa forma que A Maçã se inicia. O casal que interpretava Adão e Eva são apresentados: Canato e Prepuri; Canato é casado com duas mulheres:
"Canato tomou a maçã da mão de Prepuri e meteu-lhe o dente. Só agora Nando pôde olhar seus índios, aqueles homens, mulheres e crianças castanhos e nus, paixão e angústia de tantos anos na sua vida no Mosteiro."
O padre conhece ainda o índio Anta, preguiçoso, que toca umas gaitinhas de cana e vem pedir a Olavo um machado. E Nando pôde, também, ver as mulheres que antes causavam nele medo de não se conter sexualmente :
"Algumas mulheres já estavam acocoradas à porta das malocas, cercadas de crianças. Quase todas envelhecidas precocemente envelhecidas, os peitos caídos, mamados às vezes por crianças grandes, a sugarem de pé o seio. Daquelas pobres mulheres tivera medo fundo. Já lhe haviam dito e ele lera em tantos relatos, como é raro uma índia verdadeiramente bela depois da adolescência. principalmente agora, apaziguado na carne e no espírito, podia olhá-las todas como homem de Deus e do espírito. "

Getúlio promete, pelo rádio, comparecer à festa do Quarup; a notícia ainda acrescenta que Getúlio assinará na ocasião a lei que criará o Parque Nacional do Xingu. Fontoura fica feliz com isso. Beberrão, xingando os índios, aparentemente um grosseiro, Fontoura é, no fundo, um sonhador que entrega seu trabalho ao sonho de demarcar as terras, proteger os índios, estar ao lado deles.
"- Eu não conto com nada nesta bosta de país — disse Fontoura."
(...)
"Nando sorriu.
• Estou apenas repetindo o que todos me dizem. Quem vive entre os índios e se sacrifica por eles é o Fontoura. Isto é muito mais importante do que conhecer a gramática das línguas indígenas ou teoria sobre a origem deles. Os índios estão aí, vivos.
• Os índios estão quase mortos - disse Fontoura. - O importante é que não morram todos. A única coisa que importa é dar a eles os meios para sobreviver.
• Exatamente - disse Nando.- Eu tenho a impressão de que o que desagrada você é a idéia de integrar o índio nas populações do interior, não é? Eles se despersonalizariam, desapareceriam como índios.
Fontoura assentiu com a cabeça.
• Portanto — continuou Nando entusiasmado — o que se pode fazer é educá-los de modo a que contribuam para o seu sustento com a pesca, a caça, a lavoura, as artes plumárias, continuando a se desenvolver como índios. Poderíamos montar aqui peixarias, serrarias...
Fontoura fez que não com a cabeça.
• Não? — disse Nando.
• Não, nunca.
Fontoura se levantou da rede, foi até ao escritório e de lá voltou com um sovado mapa de Mato Grosso onde se delimitara, a lápis de cor vermelho, o Parque Nacional do Xingu, entre 10 e 12 graus de latitude Sul e 53 e 54 graus de longitude Oeste de Greenwich. A forma inclinada acompanhava o curso do Xingu, das cabeceiras dos seus três formadores até a Cachoeira de Pedras.
- Este — disse Fontoura batendo com o dedo em cima da área do Parque — é o Estado dos Índios.
Montoya, Cataldino, Rodrigues, pensou Nando, o coração a lhe bater apressado. Ave, República dos Guaranis.
• Magnífico — disse ele — o Estado Indígena.
• Sim, magnífico — disse Fontoura — se fosse realizável. E se fosse possível, de acordo com meus sonhos, estender aqui — o seu dedo passou como se abrisse uma vala pelo contorno do Parque — uma cerca de arame farpado.
• Arame farpado? — disse Nando.
• Sim — disse Fontoura — Eletrificado. Contra o Brasil.
• E educar os índios de que maneira? Que fazer deles? Que espécie de gente?
• O Estado seria de índios, de bugres, o que eles são — disse Fontoura martelando as sílabas. _ Eu não quero transformar índios em nada. Parques imensos, cuidadosamente vigiados, fizeram os ingleses para girafas e zebras no Quênia e Tangânica. Não para educar girafas e zebras. Para preservá-las vivas.
• Mas os índios têm como nós uma alma imortal — disse Nando.
• Os índios não sei se têm. Ou se ainda têm. Nós eu sei que não temos. No mundo inteiro as reservas são simples arapucas para extermínio de índios."
O Xingu começa a tomar, aos olhos de Nando, um outro aspecto: hábitos e costumes, tradições e misérias, um universo nunca antes imaginado pelo padre. É o "efeito Fontoura" na alma do jovem padre...
Conhece Ritó, uma menina "branca" porque confinada ao fundo da maloca dos pais, entrada na puberdade, segregada da tribo por isso.
O universo do Posto Capitão Vasconcelos toma para Nando a dimensão de um outro mundo, estranho e, ao mesmo tempo, irresistível.
O Quarup começa a ser devidamente preparado. Todos saem todos os dias para pescar, oferecer, na festa, às outras tribos, comida: peixe e beiju.
Lídia chega sozinha, sem o marido Otávio. Ela traz material de pesca. Com ela, Nando vai passar sobre a mais dura prova que o Xingu lhe mostrará: vai conhecer o índio Aicá, jovem, alto e forte, mas confinado à maloca, nos fundos escuros do viver. ele tem pênfigo ( fogo selvagem). A brutalidade da cena comove o padre:
"De uma rede, na penumbra, levantou-se um rapagão dos seus vinte e poucos anos. Parecia em tudo e por tudo qualquer dos índios do acampamento que Nando vira até agora. Lídia tirou do bolso um embrulho.
• Para Aicá — disse ela.
O índio se aproximou e começou a lutar com o barbante na ânsia de abrir o embrulho da caixa de anzóis e linha de pesca que lhe trazia Lídia. Então, Nando viu como estava coberto de feridas. Jó tinha muito mais anos do que Aicá, pensou Nando, mas não pode ter tido mais chagas.
• Aicá está assim há bem uns dez anos — disse Lídia — Fogo selvagem.
(...)
• É o chamado pênfigo foliáceo — disse Lídia.
• Pênfigo foliáceo — disse Aicá.
• Que horror, meu Deus. Precisamos tratá-lo — disse Nando cheio de zelo."
Lídia informa-lhe, então, que Fontoura tinha se devotado à causa de tratar o índio, que tinha levado Aicá para tratamento em São Paulo e Rio, que levara médicos ao Posto para ver Aicá e outros índios contaminados pela doença. Informa, ainda, a Nando que o índio sofre tormentos de dor, coceira , escamação e feiúra. "Um pária."
E o narrador registra, captando o pensamento do padre: "Compreensíveis os santos e santas que beijavam os leprosos e lhes lambiam docemente as feridas."
Lídia também esclarece ao padre sobre os costumes tribais: tocam-se com inocência, fazem o que a natureza lhes pede sem pudor, mas dão grandes surras nas mulheres.
Nando e Lídia acabam se relacionando sexualmente. E, não conseguindo esperar a companheira atingir o orgasmo, ouve de Lídia o que já desconfiava: sofre de ejaculação precoce.
Dois dias depois chegam ao Posto Otávio, Vilar e os trabalhadores. Vilar é Rolando Vilar, um sertanista, menos que uma personagem, alusão à família Vilar de Orlando e Cláudio Vilas-Boas.

Ramiro Vanda e Sônia chegam também para o Quarup. Falua não chega. Ramiro, que pela primeira vez se embrenhava nos matos:
"Era asco que o Diretor do Serviço de Proteção aos Índios sentia pela floresta. Gordo, balofo, de pés pequenos e mãos delicadas, podia-se esperar que tivesse medo. Mas era puro desdém. Andando ao lado de Nando metia-se em touceiras de brenha grossa afastando galhos com a mão, mas sem se curvar, sem se humilhar."
Ramiro confessa a Nando a sua paixão por Sônia, mas esta prefere entregar-se ao preguiçoso índio Anta e com ele foge para a selva.
O ministro Gouveia chega ao Xingu e o Quarup começa a ser celebrado. Gouveia não traz boas notícias: Lacerda e o episódio da rua dos Toneleiros
O Quarup começa a ser celebrado, e aí vem o desconsolo: em meio à comemoração, Fontoura ouve pelo rádio que Getúlio Vargas tinha cometido suicídio.

Estavam, pois, postergados, os planos sobre a criação da reserva.

Parte 4 — A orquídea
Nesta parte, há um salto temporal de grandes proporções. Nando está no Xingu, Fontoura, apesar de ter sido demitido, ainda se encontra lá. Fontoura passa os dias bebendo, está doente, esbraveja.
"Vilar tinha ido ver Fontoura naquela ocasião.
• Antes que eles me demitissem, eu me demiti, Fontoura.
E tive o gosto de dizer na minha carta ao Ministro que o simples fato de tirarem você da chefia do Posto do SPI me levaria também a pedir demissão.
Fontoura atirou à parede com fúria o copo em que tinha servido a cachaça.
- Não me mete nessa historinha idiota! Eu sou uma merda, um bêbado, faço quase nada pelos índios mas quando me retiraram a chefia fiquei firme. Pelo menos enquanto estiver aqui posso ajudar eles um pouco. Mas você não, não é? Vai logo embora."
Nando voltara ao Recife, D. Anselmo morrera ( o padre Hosana, colega de Nando no Mosteiro o matara e agora vive com uma prima de quem era amante). Nando leva uma vida desregrada, dormindo com prostitutas. A pedido da própria ordem, Nando deixa o Recife, afastara-se da Igreja por ocasião da morte de D. Anselmo.
No Xingu, barbudo e cabeludo, transita agora com facilidade no meio dos índios: já não é um padre, é um homem que sabe a dor dos povos abandonados à sua própria sorte.
Isolado dos amigos, perdido nos seus próprios pensamentos, desejos de servir, não respondera à Winifred:
"Por que é que você não me escreve? Se você me escrevesse e dissesse que gostava de me rever, palavra que eu ia ao Xingu. Não esqueça que nos termos do seu mundo eu vou parar no inferno por ter querido, nos termos do meu mundo, ajudar você. Então minha condenação eterna não vale um bilhete? " Era impossível dizer a Winifred que estava indo para o inferno de graça."
Nando se entrega totalmente a pacificar as tribos ao redor, em suas brigas e disputas cotidianas. Aprendera demais:
"Fontoura virou para o outro lado na rede e Nando começou, aos poucos, a sair pela floresta, ir para longe do Posto.
Tinha aprendido a usar o arco e flecha, levava presentes para índio bravo. O embornal cheio de carne seca de veado ou capivara entrava na brenha, longe dos cursos d'água, colhendo piqui nas árvores, chupando coquinho. Via gostosamente a comida acabar no embornal para depender do acaso de ave, cobra, macaco, formiga. Durante meses e anos só se detivera de quando em quando no posto no convívio de Fontoura para justificar o emprego que Ramiro afinal lhe arranjara ao passar por ali e pedir seu auxílio numa das buscas de Sônia. Mas eram visitas uma clareira na selva bruta em que vivia."
Chega o avião de uma expedição ao Centro Geográfico do Brasil. Entre os tripulantes está Francisca. Vêm Ramiro, Vilaverde ( substituto de Fontoura), Lídia e Olavo, além de Lauro, um etnólogo.
Nando é tomado de violenta emoção ao ver Francisca:
"Insensivelmente, enquanto os outros se aproximavam e se chegavam ao grupo, Nando e Francisca foram andando em direção ao Posto. Menos opresso, Nando se habituara à idéia de que ali estava Francisca.
• Você não avalia como gostei de receber sua carta na Alemanha — disse Francisca.
• Eu tive tanta pena de não poder vê-la em pessoa — disse Nando. — Você deve ter sofrido muito. Agora estou custando a crer que você esteja aqui.
• Não se lembra dos meus desenhos? Mais dia, menos dia eu tinha a certeza de vir ao Xingu."
Encontrar Sônia é uma obsessão para Ramiro que ainda a ama; aliás, o homem só vai ao Xingu com este objetivo. Confessa-se com Nando e , depois, abre o jogo para todos. O Centro Geográfico é o coração do Brasil, centro do país. Ramiro sugere que a expedição vá durar cerca de três meses. Ramiro pede a Nando que acompanhe a expedição.
"Nos primeiros dias que se sucederam à chegada de Francisca e em que todo o posto se empenhou em armar a Expedição ao Centro Geográfico, ele viveu dias esquisitos. A inquietação de tantos anos, que de qualquer forma nunca tinha se transformado em angústia clara e diagnosticável, desaparecera de repente. Mas não para ceder o lugar a algum sentimento amplo de paz e satisfação. Seria a proximidade de Francisca mais alarmante do que a privatização de Francisca? Nos primeiros dias, Nando evitou falar com Francisca, temeroso não sabia bem de quê. Ao achar que atingira o objetivo da naturalidade constatou que o ultrapassara de longe. Estava sendo tratado por Francisca exatamente como Ramiro, Olavo ou o etnólogo Lauro. E viu então com um cerrar da garganta a extensão do problema novíssimo. Francisca era agora livre, ele era livre. Não estavam numa cidade. Aprestavam-se para uma longa viagem de desbravamento. Ainda mais cheio de amor por Francisca, Nando sentia no entanto uma certa irritação(...)
Que pensava Francisca a seu respeito? Como era Francisca?
-Você ainda vive muito em função de Levindo, não? — disse Nando.
• A única coisa que eu tenho feito que de longe possa parecer um serviço de amor prestado à memória de Levindo tem sido ensinar camponeses a ler e escrever. Agora, surgiu essa oportunidade de pagar uma promessa minha a ele.
• Eu me lembro — disse Nando — A estrada de cajueiros..."
Levindo tinha morrido num confronto entre usineiros e camponeses, tinha morrido por um sonho, líder que era dentro do espírito das Ligas Camponesas de Pernambuco.
"- Eu fiquei noiva da luta de Levindo, sabe. Juro que não me importava de morrer por lá, como ele."
Sai a expedição para o Centro Geográfico...
Vão encontrando índios, dando presentes. Por um índio suiá, ficam sabendo que entre os txukarramãe existe uma mulher branca. Seria Sônia?
Fontoura continua bebendo cachaça, fazendo os contatos com o auxílio de Nando.
Na zona do Jarina e Cachoeira Von Marthius, Nando descobre o que dá nome ao capítulo e o aproxima de Francisca: orquídeas:
"- Venha , venha comigo, Francisca.
• Aonde? Você parece que viu assombração.
• Era quase isto. Se lembra que outro dia você se queixava de nunca ver flores na floresta?
• Lembro.
• Pois eu acho que a floresta te ouviu e meteu-se em brios.
Nando falava em tom ligeiro em parte para esconder a agitação da descoberta, para guardar a naturalidade, para que Francisca não perdesse tempo e entrasse na ubá que voltou célere ao fio de vivas águas lilases. Francisca ia silenciosa ao seu lado.
• Nando! — disse Francisca.
Ela colocara a mão no braço de Nando ao descobrir, contornada a ilha, a vereda de orquídeas que surgia ofertando-se à proa da ubá. E ali ficou sua mão à medida que a canoa prosseguia, que as orquídeas desciam pelas árvores, que o furo ia pouco a pouco se afunilando. Quase de si mesma, a ubá se encostou à margem direita do furo e Nando e Francisca saltaram enlaçados pela cintura. Mais para dentro da margem havia orquídeas claras, quase brancas. Nando e Francisca não falaram. Apenas se voltaram um para o outro, braços abertos, e o breve instante em que se separaram foi para deixarem cair no chão as roupas sobre as quais se deitaram debaixo de orquídeas pálidas, separados do rio por um cortinado de orquídeas coloridas."
Aqui, você pode perceber claramente o narrador observador que tudo vê de longe e narra como se fosse apenas um espectador. Compõe a cena a doce paisagem propícia para o encontro carnal entre os dois. A natureza, tal como seus desejos, é exuberante, intensa.
Os dois vivem dias de mais intenso amor. Nando quer se casar com Francisca, mas ela ainda está ligada, apesar de fazer amor com ele, a Levindo. Pede um tempo para pensar, diz que dará a reposta quando for embora do Xingu.
Francisca conta a Nando que, para amá-lo daquele jeito, teve outros homens depois de Levindo, por isso sabia como fazer amor tão intensamente com ele; Nando descobre que Winifred também contara a Francisca que o iniciara sexualmente.
Nando insiste em casar-se com ela, quer experimentar isso:
"Francisca saiu andando na frente dele, sem responder. Dentro de pouco tempo, numa distante clareira, se amavam como se Nando quisesse provar o que tinha dito e como se Francisca só duvidasse por medo de acreditar no que ouvia.
• Não é possível que dure — disse Francisca — essa maneira violenta que temos de nos amar. Ressacas não duram, nem tempestades, nem nada assim como tufões.
• Cachoeiras duram — disse Nando. — Não acabam nunca.
Francisca sentou no duvidoso leito de roupas estendidas.
• No dia em que tivermos uma cama de verdade, isto passa.
• Não adianta dizer coisas chocantes, para se convencer.
• É quase impossível que não passe, Nando. Antigamente eu me considerava má porque amava meu noivo, porque você era padre e ver você me perturbava. Agora sinto uma certeza que me horroriza. Mesmo que eu tivesse me casado com ele, eu ia ser sua."
E recorda, na presença de Nando, como se fosse mais para ela mesma, a morte de Levindo:
"- Eu vi o corpo de Levindo, Nando, morto duas vezes no mesmo dia. Primeiro no pátio do Engenho da Estrela. O portão do engenho estava fechado, a Polícia cercava os cadáveres. Agarrada nas grades, chorando de amor e de raiva, vi o corpo de Levindo entre os dos camponeses que tinham ido reclamar salário atrasado. Meu pai me abraçava pelos ombros, com uma lealdade e um carinho que eu nunca tinha sentido nele. Levindo não tinha carregado nenhuma arma e em torno dos camponeses estavam arrumadas as que carregavam: duas peixeiras, três foices. E todos fuzilados, ali. Levindo ensangüentado e empoeirado. Quando eu gritei, me levaram embora, mas fui vigiar o Instituto Médico Legal na cidade. Quando os corpos chegaram, entrei sozinha, em sil6encio, e vi Levindo morto pela segunda vez. Ele e os outros tinham tido as roupas rasgadas no Instituto, para contagem de buracos de bala. Apesar daquela sua doce vaidade de estudante que queria ser camponês, Levindo, de camisa de algodão, calça de brim, sandálias de couro cru era o chefe daqueles mortos. Um buraco no pescoço, dois buracos no peito. A gente quase ainda via os fios da vida saindo com pena dos buracos. Acho que eu nunca teria tido força de sair de lá, se um e outro braço não me ajudasse. E falando de vingança. Era Januário me dizendo: "A família de Levindo está apavorada. Se me entregasse o corpo, eu botava cinco mil camponeses para enterrar Levindo. Vão levar ele para casa como se tivesse sido atropelado por um jipe." Depois acompanhei Levindo fechado no caixão. Um enterro discreto, de menino que ficou embaixo de carro. E que agora está sendo chorado aqui pela noiva nua em pêlo."

Ramiro desvia a expedição e chega à tribo onde o suiá dissera haver uma mulher branca. Mas todo seu entusiasmo acaba quando vê à sua frente uma mulher albina, de olhos descoloridos, pele transparente. Não era Sônia.
Fontoura adoece de malária. Seu fígado, ruim de tanta cachaça, ainda tem que aguentar mais bebida.
Depois de muitas dificuldades, chegam , finalmente , ao Centro Geográfico do país. Fontoura está quase morrendo, mas insiste em erguer o padrão, o marco do coração do Brasil:
"Quando chegaram ao pé do padrão, Fontoura pôs os joelhos no chão e leu:
• Centro Geográfico do Brasil, latitude dez graus e vinte minutos sul, longitude cinqüenta e três graus e doze minutos a oeste de Greenwich.
Fontoura caiu de cara no chão, as mãos para frente, o ouvido colado à terra enquanto inquietos bandos de formiga lhe cobriam os dedos e o pescoço.
• Nando! — gritou Francisca — Levanta, Fontoura, levanta!
• Ponha o seu ouvido na terra — disse Fontoura.
• Para quê? Levanta!
• Mas na impossibilidade de erguer Fontoura, Francisca se curvou, deitou o rosto sobre as formigas enlouquecidas, sentiu viva e feroz a terra de Levindo.
• Está ouvindo? — disse Fontoura.
• O quê?
• O coração.
• Estou ouvindo — disse Francisca — Agora, levante, Fontoura.
• Você ouviu bem?
• Ouvi, ouvi, agora vamos.
Escutar o coração do país, o coração do país.
Mas o coração do país está corroído pelas "saúvas", metáfora usada também por Lima Barreto ( em Triste Fim de Policarpo Quaresma) e Mário de Andrade ( em Macunaíma). Metáfora perigosa sobre o idealismo, representado por Fontoura, e a corrupção e a dissipação de objetivos ( representada por Ramiro).
ParteV — A Palavra
Este capítulo inicia-se quando Nando, em Pernambuco, assiste a uma aula de Francisca. Sente-se emocionado vendo o trabalho dela, ensinando o que para eles sequer existia: palavras, daí o nome do capítulo. Ela alfabetiza os camponeses no Movimento Cultura Popular; com a ajuda de um slide, projetando as sílabas na parede:
"Vários camponeses leram juntos:
• Eu.
Outro slide e disseram:
- Re...
• Pensem em classe e clamor — disse Francisca enquanto colocava o slide com o pronome e o verbo.
• Eu re — disse um camponês.
• Eu remo! — disse outro.
• Eu sei professora, eu sei Dona Francisca. EU RECLAMO! "
Francisca instiga a imaginação deles:
"- Reclamar vocês todos sabem o que é — disse Francisca.
Os camponeses riram.
• Só que precisam reclamar cada vez mais. Reclamar tudo a que vocês têm direito. Direito também vocês sabem o que é. Direito que todo homem tem de comer, de ganhar dinheiro pelo trabalho que faz, de votar em quem quiser em dia de eleição.
• O voto é do povo — disse um camponês.
• O pão é do povo — disse outro.
• O pão dá vida e saúde ao povo — disse outro."
Nando se emociona ao vê-la assim, ensinando ao povo, ao seu povo.
Francisca ensina, ainda, o que é Declaração dos Direitos Humanos e o que é Constituição do Brasil. Assegura que em nenhum país a Constituição "tire o voto do povo, por exemplo, proibindo o voto de quem é pobre, ou preto, ou coisa assim. Não permite que exista o cambão, por exemplo,. Quem trabalha para um patrão tem direito a salário, em dinheiro do país. Assim é que os brasileiros têm seus direitos garantidos por uma...
-Constituição — disse um camponês."
Tinham voltado do Xingu; antes, haviam ficado um tempo no Rio, amando-se doidamente num quarto de hotel. Ao chegar no Recife, Nando se acomodara na casinha de praia que herdara dos pais.
Os dois eram, agora, apenas amigos. Com a chegada ao Recife e seu envolvimento com os camponeses, viera para ela as obrigações que Levindo lhe legara: servir o povo, estar ao lado dele. Quer casar com Francisca, mas isso esbarra na questão Levindo:
"- Você sabe do meu compromisso — disse Francisca- a outra pessoa de minha vida.
• Que outra pessoa?
• Pessoa? Não sei se é. Os mortos são o quê?
• Francisca! Pelo amor de Deus!
• Não consigo, Nando, não consigo. Não posso te amar aqui, onde ele viveu. E não, por favor! Não diga isso!
• O quê?
• Não proponha que a gente vá embora daqui. Levindo não pode morrer completamente, sabe? Eu tenho pensado, como eu penso nisto, nele, em você, em nós, nele e em mim, o tempo todo, o tempo todo. Já vasculhei tudo, tirei todas as pedras do lugar, me virei do avesso. Eu me chamei de fingida, de reles, tive vontade de cuspir na minha cara no espelho. Eu disse a mim mesma que se o Levindo estivesse vivo eu ia amar você também, tenho certeza. Então, por que fingir de viúva agora, e viúva só aqui, onde ele viveu? Viúva e desconsolada depois de tudo o que eu fiz com outros homens e de todo o amor que eu dei a você? Estou querendo enganar quem? Me apresentar assim a quem?"
Nando também se põe a trabalhar ao lado de Januário , o líder dos camponeses, de Otávio , de Padre Gonçalo e do governador ( Miguel Arraes). Januário tinha plano de conduzir os camponeses a uma rebelião contra os usineiros. Estamos em pleno governo de João Goulart.
Nando participa ativamente do trabalho junto às Ligas Camponesas e tem como amigos os camponeses, prostitutas, pescadores.
As lutas entre camponeses e usineiros se recrudescem. Manuel Tropeiro, homem lutador, é presença constante na casa de Nando. Ele conhecia bem os caminhos para possíveis fugas, era um homem consciente de que havia necessidade de luta armada.
Francisca continua sua missão de ensinar e fazer entender, a cada um dos camponeses, o valor social das criaturas da "massa".
O padre Hosana tinha sido libertado, depois que sofrera julgamento por matar D. Anselmo. Nando o encontra e fica sabendo que ele ganha a vida com o sítio, vivendo com a prima. Hosana ressalta que Nando, "a menina dos olhos de D. Anselmo" tinha desapontado o velho. Pede perdão a Nando. Hosana sente-se absolvido de tudo quando Nando o perdoa.
Januário mergulha na clandestinidade.
Há lutas entre camponeses e militares, desaba o mundo em Pernambuco.
É nesse capítulo que presenciaremos o Golpe Militar de 64. Entre os presos pelo regime, está Nando, que passa a ser torturado também, tomando choques, é preso numa câmara frigorífica. O tenente que o prende lá afirma que "russo não sente frio, está acostumado com a Sibéria."
Mas Nando é solto. Padre Gonçalo propõe uma fuga. Nando entende que vai sair do país, mas Gonçalo nega:
"- Vim buscá-lo, Nando. Vamos fugir.
O coração de Nando bateu apressado.
• Você conseguiu passaporte?
• Passaporte? Você não está pensando em sair daqui! Não me diga que está, Nando.
• Você é que me veio falar em fugir.
• Fugir para dentro da gente, Nando, não para a casa dos outros! Lá a gente só pode viver do lado de fora, feito um gravatá. Você, pelo menos, e eu, e mais uns poucos, não podemos tratar isto aqui como se fosse um acampamento. Todo mundo na beira d'água, apanhando sol na praia."
Nando revela, então, que Francisca partira para a Europa. Ele fica no país.
A palavra de Francisca cessara, mas os frutos teriam continuidade...
6. A Praia
Nando recolhe-se à casinha da praia. Passa a amar todas as mulheres: prostitutas, feias, abandonadas, as que querem se matar. Tenta convencer a todos que devem fazer também isso. É outro tempo, o de provas.
Amaro, um pescador, acredita nas teorias dele.
"É preciso deixar a virtude crescer como uma planta lenta e séria, pensou Nando. Aquela criatura linda e que tanto o atraía era uma queda. Mas durante a queda se descansa. Acumulam-se forças para uma nova escalada. Matando a curiosidade de Cristiana, matava um pouco as saudades de Francisca."
Manuel Tropeiro continuava preso ainda e "não era homem de ter medo de prisão nem de luta." Raimunda, a mulher que Manuel amava, o aguarda. Mas sonha coisas banais, uma casa e um quintal.
Os pais de Amaro, indignados, vão buscar o filho "perdido"por Nando. Eles têm medo das doutrinas do padre e do jeito abusado de viver que ele tem.
Lídia vem visitar Nando, fala que Ramiro foi outra vez em busca de Sônia, perdida para sempre nas florestas do interior do Brasil. E incita Nando a fazer algo para si mesmo. Nando confessa-se sem forças pra fugir, ou realizar coisas importantes. Está alheado do mundo. Lídia quer saber sobre Nando e Francisca:
"- Você , pelo menos, se encontrou mesmo? Ou continua perdido em Francisca?
• Achado é o que você quer dizer.
Lídia suspirou.
• Por falar em achados e perdidos, quem te mandou um grande abraço foi Ramiro. Sai novamente em busca de Sônia."
Nando colocara na cabeça um plano: fazer um jantar para Levindo, para a memória dele. Um grande jantar ao ar livre, com a participação de todos: estudantes, pescadores, camponeses, todos, indistintamente. Manuel Tropeiro estava livre, aproveitavam e comemoravam também.
"- Mas acho que agora posso vir com a tropa de jegues. Quando me soltaram lá no Batalhão o tenente me disse: "Tu não te mete mais noutra que não acontece nada. Mas cuida dos teus burros em vez de virar burro dos outros.". Os outros sendo Seu Otávio, Januário, o senhor mesmo. E aqui está o burro.
• Eu sei que vc não é homem de abandonar a luta — falou Nando — mas acho bom ir devagar, no começo."
E a preparação da casa de Nando para o jantar começa: transformou-a numa réplica da escola onde Francisca ensinava a palavra aos camponeses e deserdados. Mas só havia uma única palavra agora nos cartazes: LEVINDO, VIVA Levindo. E chegou o dia da comemoração. Gente de tudo o que era canto, lado, profissão. Todos para comemorar Levindo, símbolo da luta contra os poderosos.
No meio da festa, aparece a marcha dos "populares", invade a festa e começa uma luta que só termina com a intervenção da Polícia que, aliás, liderava a tal marcha.
Nando é espancado pelo sargento Xiquexique e o soldado Almeirim na areia da praia. Quase que o matam. Mas Cristiana e Margarida, prostitutas convidadas para a festa, seduzem os dois homens que nele batiam.
Manuel e Hosana levam Nando embora dali, Hosana vai hospedá-lo. Quase que os soldados mataram o ex-padre: quebrado, um olho perdido, aviltado fisicamente, Nando era uma espécie de massa disforme que custa muito a se ajeitar de novo na vida. Tinha consciência, o corpo miserável não correspondia a nada. Mas um dia:
"Nando abriu os olhos sob o maracujá alastrado de flores da paixão. Só com as dores maiores numa perna e num olho incandescente. O mais, era o peso do corpo contra a cama, uma medalha de sol na cara, uma grande compressa de sol no ventre, moedinhas de sol por toda a parte. A visão incerta de Nando abrangeu seu próprio corpo envolto em cobertor de algodãozinho escuro e lustroso de manchas amarelas. Reconheceu o leopardo que derrotara o espírito cravando as garras na terra. E sentiu fome. Não de nada. Fome.
Ao seu redor reconheceu os amigos. Cara a cara. Olhos úmidos, azuis de Cristiana, garços de Amaro, negros. Nando esboçou um sorriso, levantou um pouco a mão direita. Mal viu, porém, como todos se precipitavam para beijá-la e como todos choravam de alegria. Mergulhou no seu primeiro sono tranqüilo."
7. O mundo de Francisca
O sofrimento veio depois: dores, impossibilidades, a descoberta do olho perdido:
"Ah, então não tinha aberto os olhos mas um olho só? Nando levou a mão ao rosto, sentiu a venda no olho esquerdo, e uma dor ali. As palavras chegavam aos seus ouvidos direitinho, mas vazavam depois: o que era mesmo que tinham dito? "
Aos poucos se lembrava de tudo. Buscaram o médico que afirma que ficará bom da perna , mas que o olho está definitivamente perdido.
Hosana mostra o segredo do mosteiro para o ex-padre: pintura de cenas sacras agora convertidas em cenas profanas.
Nando decide que vai, com Manuel Tropeiro, participar das guerrilhas. Vai para o Araguaia.
Num domingo de Carnaval, em companhia de Manuel Tropeiro, vai até a casa da praia ver se há correspondência para ele. Há, e de Francisca. Mas um soldado aparece na escuridão: é Almeirim. Aparece outro soldado, mas com a ajuda de Manuel, acabam matando os homens da polícia.
Vão fugir, juntos.
Manuel traz os cavalos...
"Nando já a cavalo mal ouvia Manuel Tropeiro. Sentia que vinha vindo a grande visão. Sua deseducação estava completa. O ar da noite era um escuro éter. A sela do cavalo um alto pico. Da sela, Nando abrangia a Mata, o Agreste e sentia na cara o sopro do fim da terra saindo das furnas de rocha quente. E viu: aquele mundo todo com sua cana, suas gentes e seu gado era Francisca molhando os pés na praia e de cabelos ardendo no Sertào.
• Manuel — disse Nando — eu vou para ficar.
• Assim tenho pedido a Deus que seja a sua resolução.
Já em plena estrada, os cavalos marchadores deixando muito chão para trás. Manuel voltou a falar:
• Tinha carta de Dona Francisca?
• Tinha, Manuel. Mas não é mais preciso. Sabe o que é que eu descobri?
• Diga, seu Nando.
• Que Francisca é apenas o centro de Francisca.
Nando ia dizer mais alguma coisa, mas se calou. Se Manuel não tinha entendido, ia em breve entender por si mesmo. Andavam agora num meio galope, Nando relembrando coisas da vida inteira mas sem sentir nenhuma ligação com os pensamentos e sentimentos que tivera: como homem feito que encontra um dia numa gaveta cadernos de colégio. Estava descontínuo, leve, vivendo de minuto a minuto. Só tinha como sensação de continuidade o fio de ouro de Francisca, assim mesmo porque era um fio fiado com astúcia na trama do mundo a vir. Não vinha propriamente do passado. Bateu alegre no peito com a mão direita, sustentando as rédeas na esquerda.
• Boa essa roupa, Manuel!
Manuel Tropeiro falou com sua ironia sem malícia:
• Com seu perdão, seu Nando, a roupa preta não fez o senhor padre. Esse gibão de couro não vai fazer o senhor cangaceiro, não.
Nando riu:
• Não se assuste, Manuel. Eu agora viro qualquer coisa.
• Eu vou perfilhar o nome de Adolfo para me esconder nele, seu Nando. Não tem um som de gente forte? Adolfo?
• Você é que é mais forte e que vai fazer a força do nome. De qualquer nome.
• Sempre ouvi meu pai falar num tal de Adolfo Meia-Noite, cangaceiro importante — disse Manuel — E o seu nome qual vai ser? Já pensou?
• Já — disse Nando — Meu nome vai ser Levindo.
E Nando viu o fio fagulhar ligeiro entre as patas do cavalo como uma serpente de ouro em relva escura."
Quarup acaba aqui. Preste atenção a esse final, o que justifica também o título da obra: Nando assume, tal como no Quarup indígena, o lugar do herói Levindo. O jantar que ele preparou ela a tal festa que os índios preparam para saudar seus mortos. Foi o que ele fez. Com a participação de todas as "tribos"humanas, tal como no Xingu as tribos, unidas, participam da festa.
Vai, então, no Araguaia, continuar o trabalho de Levindo, fazer jus ao nome do herói. Transformado, é para lá que se dirige, porque lá também, como você sabe, está o coração pulsante do Brasil.