Resumo Sobre Patativa do Assaré - Sylvie Debs

Resumo Sobre Patativa do Assaré de Sylvie Debs.

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Resumo Sobre Patativa do Assaré - Sylvie Debs
Patativa do Assaré

Patativa do Assaré: 

Uma voz do Nordeste

Sylvie Debs*

O que faz a força e o sabor da poesia de Patativa do Assaré é, sem dúvida, o vínculo indestrutível entre o poeta, o sertão e o público.

Patativa do Assaré, cujo verdadeiro nome é Antônio Gonçalves da Silva, nascido no dia 5 de março de 1909 na Serra de Santana, pequena propriedade rural da prefeitura de Assaré, ao sul do estado do Ceará, inclui-se na linhagem dos cantadores sertanejos de quem ele mantém a tradição. Oriundo de um meio muito modesto, descobre a literatura através dos folhetos de cordel e dos cantadores, repentistas e violeiros do Nordeste. Casado, pai de nove filhos, dedicou sua vida aos trabalhos dos campos de Assaré.

Segundo filho de um agricultor pobre da região do Cariri, havendo perdido muito jovem a visão em um dos olhos em conseqüência de uma doença, órfão de pai aos oito anos, Antônio Gonçalves da Silva é, naturalmente, conduzido a ajudar sua mãe e sua família participando dos trabalhos nos campos, meio de subsistência tradicional para os habitantes dessa região.

 Escolarizado durante seis meses quando tinha doze anos, ele reconhece que seu mestre, embora extremamente atencioso e generoso, era precariamente letrado e não sabia ensinar a pontuação. É assim que ele aprende a ler sem ponto nem vírgula, como se o ritmo das palavras fosse dado unicamente pela voz. Esta estranha aprendizagem, em realidade, é apenas a expressão profunda da oralidade que caracteriza a cultura popular e a tradição dos poetas-repórteres. 

Como a maior distração do jovem Antônio era ler ou escutar seu irmão mais velho e ler os folhetos da literatura de cordel, ele descobriu muito cedo sua vocação poética e iniciou, ao contato desta literatura, a composição de versos: “De treze a quatorze anos comecei a fazer versinhos que serviam de graça para os serranos, pois os sentidos de tais versos eram o seguinte: brincadeiras de noite de São João, testamento do Judá, ataque aos preguiçosos que deixavam o mato estragar os plantios da roça, etc.”

Aos dezesseis anos, adquire uma viola de dez cordas e decide fazer improvisações segundo a tradição sertaneja dos violeiros, tratando de todos os assuntos. Põe-se a cantar por prazer, na esperança de ser convidado para as festas: comemoração de santos, casamentos e participou assim da vida local: “A poesia sempre foi e ainda está sendo a maior distração da minha vida. 

O meu fraco é fazer verso e recitar para os admiradores, porém, nunca escrevo meus versos. 

Eu os componho na roça, ao manejar a ferramenta agrícola e os guardo na memória, por mais extenso que seja”, confessa ele. 

Assim, se ele continuou a entregar-se às improvisações pelo prazer, a poesia que ele cria está intimamente ligada ao ritmo do trabalho quotidiano, acompanhando os gestos dos trabalhos do campo e composta mentalmente ao longo dos anos, demonstrando impressionante capacidade de memorização.

No dia 23 de março de 1995, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso rendeu uma homenagem pública ao poeta popular, cego, conferindo-lhe a medalha “José de Alencar” quando de sua passagem a Fortaleza (Ceará) para a celebração de seu octogésimo sexto aniversário. 

Nessa ocasião foi lançado o disco Patativa do Assaré: 85 anos de poesia. 

..... A justaposição deliberada de alguns elementos de uma sucinta biografia põe em perspectiva a denominação de “Mestre da poesia popular” conferida pelo ensaísta e cineasta Rosemberg Cariry, que largamente contribuiu para a divulgação de sua obra. Assim, através da evocação do itinerário pessoal do poeta e da análise de seus textos mais representativos, propomo-nos a apresentar as características essenciais da poesia popular, examinada aqui em uma dimensão mais larga, aquela da cultura popular nordestina. 

Um poeta itinerante

Aos vinte anos, na ocasião de uma visita ao vilarejo de um primo materno, este último, encantado pelas improvisações de Antônio, pediu autorização à sua mãe para que lhe permitisse seguir com ele para o estado do Pará. 

Nesta ocasião ele conheceu o escritor cearense José Carvalho de Brito, que lhe consagrou um capítulo em seu livro intitulado O Matuto cearense e o Caboclo do Pará. Além disto, este publica os primeiros textos de Antônio Gonçalves da Silva em O Correio do Ceará para o qual ele colaborava. 

Estes textos foram acompanhados de um comentário nos quais José Carvalho de Brito comparava a poesia espontânea de Antônio Gonçalves da Silva à pureza do canto da patativa, pássaro do Nordeste. 

Foi assim que nasceu o pseudônimo de Patativa e para distingui-lo de outros improvisadores, acrescia o topônimo de sua vila natal: Assaré. 

Em Belém continuou suas improvisações em companhia de outros poetas como Francisco Chapa, Antônio Merêncio e Rufino Galvão. Ao termo de cinco meses, não resistindo mais aos ataques de saudades, ele decidiu tornar a viver no Ceará.

A consagração oficial

De volta a Assaré, retomou os trabalhos do campo aos quais dedicou o resto de sua vida. 

Havendo sido notado pelo latinista José Arraes de Alencar, é convidado a publicar seus textos, Patativa do Assaré argumentou que não era mais do que um pobre agricultor e que não dispunha, portanto, de meios de publicar sua obra. 

José Arraes de Alencar lhe propõe uma solução: ele se encarregaria das negociações com o editor Borçoi no Rio de Janeiro e Patativa do Assaré lhe reembolsaria os custos da impressão com o produto da venda dos livros. 

É assim que surge a sua primeira compilação Inspiração nordestina, em 1956. 

O sucesso da antologia lhe permitiu uma segunda edição em 1966, enriquecida de novos textos: Cantos de Patativa. Nesta ocasião, ele passou quatro meses no Rio de Janeiro; entretanto a venda de seus livros se deu essencialmente no Ceará.

A divulgação da obra

Em 1970, o professor José de Figueiredo Filho publicou uma nova coletânea de poemas acompanhada de seus comentários: O Patativa do Assaré. 

Em 1978, a partir da iniciativa do professor Plácido Cidade Nuvens, foi publicada pela Editora Vozes a compilação Cante lá que eu canto cá, considerada até hoje como a compilação da maturidade. 

Em 1988, surge uma nova antologia de textos de Patativa do Assaré, intitulada Ispinho e Fulô sob a direção de Rosemberg Cariry, que compreende uma seleção de textos publicados nos folhetos, jornais, revistas ou discos, produtos de numerosos recitais feitos pelo país. 

Mais recentemente, na ocasião de seu octogésimo sexto aniversário, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará publicou uma coletânea de textos em homenagem ao poeta (Aqui tem coisas) que salienta sua originalidade, sua ancoragem na oralidade, graças à prática da improvisação e à técnica de desafios poéticos. 

...... Assim, Patativa do Assaré, enquanto mestre da poesia oral, nunca tentou publicar um texto com seus próprios meios, mas foi sempre publicado pelos admiradores de sua obra. 

Da mesma forma, ele continua a ser solicitado tanto pelos amadores quanto pelos especialistas da cultura popular, não somente brasileiros mas também estrangeiros, que se interessam ao mesmo tempo pelo processo de criação e de transmissão desta tradição nordestina.

UMA APROXIMAÇÃO DA POESIA POPULAR 

A denominação “poesia popular” foi muitas vezes associada a um certo número de representações negativas que a situam no lado da literatura menor por oposição à Literatura. 

As conotações mais correntes que lhe são conferidas são aquelas das simplicidade dos temas abordados e das idéias tratadas, facilidade de versificação e banalidade das rimas, ingenuidade dos sentimentos expressos, falta de originalidade e de criatividade, pobreza de vocabulário, riqueza estilística limitada, simbólica indigente. 

.....o povo é capaz de se exprimir espontaneamente: “A poesia natural e puramente natural possui ingenuidade e graça, por onde ela se compara à principal beleza da poesia perfeita segundo a arte......[ Montaigne] 

No contexto nordestino, é preciso recordar que a poesia popular inscreve-se na tradição oral desta região do interior: um de seus principais agentes, o cantador, proveniente do meio rural, em geral analfabeto, improvisa ou narra, graças à sua memória prodigiosa, “a história dos homens famosos da região, os acontecimentos maiores, as aventuras de caçadas e de derrubas de touros, enfrentando os adversários nos desafios que duram horas e noites inteiras, numa exibição assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura tradicional”. 

A versificação utilizada, em geral a sextilha hexassilábica ou a décima heptassilábica de rimas contínuas, parece mais ser a expressão de uma técnica de memorização do que a expressão de uma forma poética erudita, a serviço da transmissão de um “saber simbólico: ciência, cultura popular, tradição”. Daí, a escansão dos poemas propriamente é muitas vezes surpreendente pela sua falta de preocupação expressiva: “Nenhuma preocupação de desenho melódico, de música bonita. Monotonia. Pobreza. Ingenuidade. Primitivismo. Uniformidade… 

Não se guarda a música de colcheias, martelos e ligeiras. A única obrigação é respeitar o ritmo do verso”. A declamação se atém ao essencial: a narrativa dos acontecimentos. 

Sem dúvida, conviria debruçar-se mais adiante sobre as temáticas abordadas para aperceber-se de que, sob esta aparente ingenuidade, esconde-se uma profunda experiência da vida quotidiana que confere uma dimensão simbólica determinante à sua obra...... “o que nos toca do nosso folclore não é ele ser a obra “de quem não sabe”, mas, ao contrário, nascer do sofrimento e da alegria, da malícia e do coração daqueles que sabem muito bem. Eles sabem o que é ter fome ou dor de amor, ir à guerra quando não se queria ou trabalhar com a última das forças. E estes encontram muito precisamente, ao longo do tempo, palavras insubstituíveis para manifestar sua dor ou sua felicidade, para embalar suas mágoas ou exprimir sua cólera”.

Restituindo-se a obra de Patativa de Assaré ao contexto sertanejo, considerando a influência das tradições dos trovadores, dos repentistas, dos violeiros e da literatura de cordel, é forçoso reconhecer na voz do poeta popular o eco dos sofrimentos, das alegrias e das desgraças da população nordestina do sertão: “Poesia telúrica, colhida da terra, dos roçados como se estivesse apanhando feijão, arroz, algodão, ou quebrando milho e arrancando batata e mandioca. 

Sua inspiração não é fruto de estudos. Ela germina dentro de si como a semente nas entranhas da terra”. Testemunha um modo de vida, elabora uma identidade. Por isto, ele é apresentado como o “verdadeiro, autêntico e legítimo intérprete do sertão”. 

Com efeito, uma das dimensões mais marcantes da obra de Patativa do Assaré é a preocupação de descrever a vida quotidiana do sertão e, através deste testemunho, protestar o reconhecimento da dignidade, da integridade e da modéstia do camponês sertanejo por oposição à arrogância do cidadão urbano ou do brasileiro do sul. 

Parece que a afirmação de sua própria identidade passa mais freqüentemente pelo confronto com o outro, como chama atenção o título da compilação: Cante lá que eu canto cá. 

Esta última, composta a partir de uma seleção de textos feita pelo próprio autor com a intenção de definir suas preferências literárias. 

Apresentação da obra

Patativa do Assaré, um poeta da oralidade

Na condição de herdeiro da tradição nordestina, os primeiros esboços da obra de Patativa do Assaré, improvisações e encomendas, conforme ressaltamos, são marcados pelo aspecto lúdico e comemorativo: poemas de circunstância, ligados aos acontecimentos sociais, religiosos, em relação direta com o presente, únicos e efêmeros: festas de Santos, casamentos, aniversários. 

Poesia improvisada a partir de um esboço tradicional, poesia repetitiva por suas formas e temas, personalizada em função de seu destinatário. Poesia declamada ou cantada, ela participa plenamente da vida da comunidade: “age falando, cantando, representando, dançando no meio do povo, nos terreiros das fazendas, nos pátios das igrejas nas noites de “novena”, nas festas tradicionais do ciclo do gado, nos bailes do fim das safras de açúcar, nas salinas festas dos “padroeiros”, potirum, ajudas, bebidas nos barracões amazônicos, espera de “Missa do Galo”; ao ar livre............. Convém ressaltar que Patativa do Assaré entregando-se sempre a este gênero de improvisações, uma parte importante da obra não foi nem será, nunca portanto, transcrita. 

......Assim, os primeiros versos de Coisas do meu sertão são transcritos conforme seguem: 

“Seu dotô que é da cidade 

por “Senhor Doutor que é da cidade 

Tem diproma e posição

Tem diploma e posição 

E estudou derne minino 

E estudou desde menino 

Sem perdê uma lição”

Sem perder uma lição”

.....a linguagem cabocla - o linguajar da rude gente sertaneja é tão crivado de erros, de mutilações e acréscimos, de permutas e transposições, que os vocábulos, com freqüência, se desfiguram completamente, sendo imprescindível um elucidário para o leitor não habituado a essas formas bárbaras e, ao mesmo tempo, refeitas de típico e singular sabor”. 

Essas marcas da oralidade confirmam a origem rural do poeta e reforçam o caráter sertanejo do universo descrito. 

O registro de língua utilizado, a alteração das palavras, o vocabulário regional conferem a estes textos todo o sabor e originalidade da língua do interior das terras, do sertão. 

Último elemento essencial a ser observado.... Não havendo jamais escrito texto algum e dotado de uma notável capacidade de memorização (é capaz de recitar qualquer uma de suas composições, qualquer que seja a sua Antigüidade), e a pratica da improvisação em todas as circunstâncias: “A agilidade do improviso, o inesgotável repertório de situações, as respostas instantâneas às sugestões recebidas acentuam o repentista à capela (…). 

Métrica, ritmo e rima fluem com a naturalidade com que enuncia seu canto. 

O que ele diz é transcrito para o papel, mas continua fiel aos códigos da transmissão oral”. 

É freqüente que o poeta, após haver perguntado o nome e algumas informações sobre as pessoas que vêm vê-lo, improvise um pequeno poema no qual traça um retrato de seu visitante, apesar de sua cegueira. Muito atento durante as discussões, sua habilidade lhe permite apoderar-se da personalidade de seu interlocutor. 

A voz permanece para ele o instrumento privilegiado do conhecimento e da comunicação. 

… Uma leitura mais abrangente da obra descobre também a presença de personagens tradicionais do sertão: o vaqueiro, o caboclo, o roceiro, o caçador, o mendigo, sem esquecer os animais familiares como o cavalo, o boi e o cachorro. 

É preciso ressaltar, enfim, a grande variedade de personagens que habitam os poemas e que são nomeados de forma tradicional e popular, seja por referência ao pai (Zé Geraldo), à mãe (Zé de Ana), ou à atividade profissional (Ciça do Barro Cru). 

...... Quanto à estrutura mesma dos textos, eles estão muito próximos do modelo da fábula: conduz o leitor à abertura, narra, formulação da moral no desfecho. 

Raymond Cantel já havia, por sua vez, sublinhado largamente as intenções moralistas da literatura popular nordestina: “Os sentimentos tradicionais, a família e o amor do próximo são celebrados, mas trata-se, antes de tudo, de ensinar ao sertanejo, sempre distraindo-o, que se ele não souber resistir aos impulsos de seu temperamento, ele terá de suportar as conseqüências”. 

Patativa do Assaré explica a origem de certas composições por estas mesmas razões: melhor que punir um de seus netos desobedientes ou um menino da vizinhança que lhe havia enganado para melhor roubá-lo, ele optou por recorrer à poesia, com o duplo objetivo de expor publicamente aquele que cometeu uma falta (punição que ele julga mais eficaz do que um acerto de contas cara a cara) e ensinando-o, ao mesmo tempo, o perdão e a boa conduta. Esta atitude de sabedoria popular constitui um ensinamento moral prático que toma suas referências no quotidiano. 

É assim que Patativa do Assaré preenche sua função de educador tanto junto às crianças consideradas por ele como um elemento fundamental “A criança, para mim, é a maior riqueza do mundo” Patativa do Assaré afirma sua solidariedade com a luta dos sertanejos pelo reconhecimento de seus direitos e com a reivindicação de uma reforma agrária que lhe permitiria ter um nível de vida mais digno: “A temática social que domina sua poesia está assentada em aspirações universais de justiça e igualdade, sem qualquer refinamento ideológico”. 

Agricultor, ele denuncia a morosidade dos políticos que jamais tentaram eliminar a seca, flagelo maior do Nordeste, que é a origem das constantes migrações de sertanejos: 

“A seca pertence ao império da natureza, mas pode ser resolvida pelo homem. 

Em países de clima igual ou pior que o nosso, o problema de abastecimento de água foi superado. 

A diferença aqui é que os donos do poder não se interessam pela solução. “Eles vivem do problema”, declara Patativa do Assaré. Na coletânea Cante lá que eu canto cá, ele confere uma posição preponderante à questão da terra e numerosos poemas evocam esta realidade dramática: O poeta da roça, Eu e o sertão, E coisa do meu sertão, Vida sertaneja, Caboclo roceiro, Cabocla da minha terra, No terreiro da choupana, A terra é natura, O retrato do sertão, Serra de Santana, Minha Serra, Coisas do meu sertão, ABC do Nordeste flagelado. O poeta, com efeito, ergue não somente uma atestação amarga da realidade quotidiana.

“Minha vida é uma guerra 

E duro o meu sofrimento 

Sem tê um parmo de terra: 

Eu não sei como sustento 

A minha grande famia…” 

(Terreiro da Choupana)

mas, reivindica a necessidade de uma reforma agrária: 

“A bem do nosso progresso 

Quero o apoio do congresso 

Sobre uma Reforma Agrária 

Que venha por sua vez 

Libertar o camponês 

Da situação precária” 

(Eu quero) 

Defendendo, assim, a principal reivindicação dos habitantes do sertão, ele torna-se verdadeiramente a voz do Nordeste e o símbolo de um processo de reconhecimento dos direitos elementares: “Em todas as grandes lutas sociais e políticas do Ceará, Patativa disse: presente ”. Este comprometimento, faz com que um certo número de poemas como Triste partida, Lição do Pinto, Vaca Estrela e Boi Fubá tenham se tornado emblemas do povo nordestino, atestando a importância do sucesso que ele alcançou junto aos sertanejos. 

Com efeito, Patativa do Assaré passou de uma poesia sentimental e lírica para uma poesia de protesto: “uma poesia que pede reforma agrária, reclama contra o abandono do nordestino, contra o sistema de meação vigente no campo, contra a seca". 

Patativa do Assaré, uma identidade sertaneja 

Com efeito, o elemento mais tocante da identidade sertaneja é esta evocação constante de uma vida extremamente difícil, de uma terra particularmente hostil, de um universo encerrado sobre si mesmo. Patativa do Assaré testemunha de forma direta: 

“Cá no sertão eu infrento 

A fome, a dô e a misera. 

P’ra sê poeta divera 

Precisa tê sofrimento…” 

(Cante lá que eu canto cá), 

ou ainda: 

“Pois aqui vive o matuto 

De ferramento na mão. 

A sua comida é sempre 

Mio, farinha e fejão” 

(Coisas do meu sertão) 

fazendo referência a um quotidiano brutal, massacrante, absurdo, asfixiante, traduzem esta luta constante do sertanejo:

A poesia cabocla, feita de suor, de fome e de fatiga, e nascida desta miséria, reivindica sua diferença face a poesia de salão: 

“Meu verso rastêro, singelo e sem graça, 

Não entra na praça, no rico salão, 

Meu verso só entra no campo e na roça 

Nas pobre paiça, da serra ao sertão” 

(O poeta da roça). 

Uma das figuras recorrentes desta afirmação de identidade é a oposição: o sertanejo se determina essencialmente pela diferença. 

O poema inaugural de sua obra escrita, Ao leitô, avisa ao leitor que ele vai descobrir uma poesia marcada pela deficiência; a ladainha das negações e das restrições sublinha estilisticamente esta confissão: 

“Não vá percurá neste livro singelo 

Os cantos mais belo da lira vaidosa, 

Nem brio de estrêla, nem moça encantada, 

Nem ninho de fada, nem chêro de rosa”. (IN, p.15) 

Em Cante lá que eu canto cá, o poeta sertanejo salienta, sempre por negações anafóricas, a pobreza que o condena ao duro trabalho da terra:

“Sou matuto sertanejo 

Daquele matuto pobre 

Que não tem gado nem quêjo, 

Nem ôro, prata nem cobre” 

(Vida sertaneja) 

Assim como faz com o ensinamento moral, as tomadas de posição de Patativa do Assaré são fundadas sobre a experiência: aquele que não conheceu o sertão na carne, dele não pode falar; a única legitimidade admissível é a de pertencer a seu povo: 

“Na minha pobre linguage 

A minha lira servage 

Canto que a minha arma sente 

E o meu coração incerra, 

As coisa de minha terra 

E a vida da minha gente’ 

(Aos poetas clássicos). 

Este olhar sobre o mundo, numa perspectiva espacial, recupera também uma oposição passado/presente; tradição/modernidade. 

A situação do sertanejo obrigado a abandonar sua terra em função da seca, a ir em direção às cidades do litoral, ou então em direção às cidades do Sul, é uma posição delicada, na medida em que ele passa sem transição de um mundo rural à escala humana a um mundo urbano onde impera o anonimato. 

O encontro destes dois universos é, não raro, doloroso e acompanhado de um voltar-se para os valores tradicionais. As cidades, o progresso, a técnica são acusados de veicular os piores males da civilização: “Mas a civilização faz coisa que eu acho ruim”(O puxadô de roda).

O sul, em particular, é tido como a sede da corrupção: “Nos centros desconhecidos Depressa vê corrompidos Os seus filhos inocentes, Na populosa cidade De tanta imoralidade E costumes diferentes” (Emigrante nordestino no sul do país). 

Conclusão

O que faz a força e o sabor da poesia de Patativa do Assaré é, sem dúvida, este vínculo indestrutível entre o poeta, o sertão e o público. O canto só pode nascer da repetição do quotidiano, com seu labor, suas alegrias e sofrimentos. 

O canto só pode ser plenamente compreendido por aqueles que comungam desse quotidiano e dessas mesmas experiências. 

Testemunhando a afeição com que é tratado pelos habitantes do sertão que vêm visitá-lo e que pedem que lhes recite o seu poema preferido; o sucesso que ele encontra durante suas excursões e, notadamente junto às comunidades sertanejas do Sul; os cordéis escritos em sua homenagem, prova irrefutável de que ele se tornou , por sua vez, um personagem-chave do Panteão nordestino. 

Patativa do Assaré é um poeta popular que, mesmo se no início cantou o sertão de forma essencialmente nostálgica e lírica, tomou consciência das possibilidades de mudança e do impacto que podia ter a sua voz. 

Embora sendo recebido pelos responsáveis políticos e honrado por sua obra, ele não cessa de lhes recordar a realidade de onde ele extraiu a sua principal fonte de inspiração. 

Uma de suas maiores preocupações é um futuro melhor para as gerações que virão. 

Este objetivo não pode ser alcançado sem passar por uma melhor educação e Patativa do Assaré vê no livro o seu auxiliar indispensável: “É por meio da leitura Que poderá a criatura Na vida desenvolver, O livro é companheiro Mais fiel e verdadeiro Que nos ajuda a vencer”(Ao meu afilhado Cainã). 

É notável que aquele que representa hoje a tradição oral da forma mais monumental, sonhe em continuar sua ação através da tradição escrita: sinal dos tempos, evolução das tradições? 

Pesquisadores e universitários têm lamentado, há alguns anos, o fim da literatura de cordel, avaliando que este modo de transmissão de conhecimentos não resistirá mais diante dos novos meios de comunicação. 

Talvez fosse preciso formular diferentemente o problema diante do lugar ocupado por Patativa do Assaré: herdeiro de uma forte tradição logrou transformar seu papel e sua mensagem. 

O que é, sem nenhuma dúvida, o objeto de uma evolução, é a função do poeta popular e não sua arte propriamente dita.

Obras publicadas

ANTÔNIO GONÇALVES DA SILVA, (O PATATIVA): 

Inspiração nordestina, Cantos de Patativa, Rio de Janeiro, 1967 , 2ª edição ampliada, p.231 

PATATIVA DO ASSARÉ: 

Cante lá que eu canto cá, Filosofia de um trovador nordestino, Editora Vozes, Petrópolis, 1978, p. 355 

PATATIVA DO ASSARÉ: 

Ispinho e Fulô, Fortaleza, 1988, Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto, Imprensa oficial do Ceará, p. 284 

PATATIVA E OUTROS POETAS DE ASSARÉ: 

Balceiro, Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1991, p. 112 

PATATIVA DO ASSARÉ: 

Aqui tem coisa, Fortaleza, 1994, Multigraf/ Editora, Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, p. 252 

PATATIVA DO ASSARÉ: 

Cordéis, Juazeiro do Norte, URCA, Universidade Regional do Cariri.