Trabalho Pronto de Bretton Woods à Hong Kong - Welber Barral

Trabalho sobre Bretton Woods à Hong Kong - Welber Barral.

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Trabalho Pronto de Bretton Woods à Hong Kong - Welber Barral
Bretton Woods à Hong Kong

DE BRETTON WOODS A HONG KONG  Welber Barral

Introdução        

Mais de uma década após a Conferência de Marraqueche, que culminou com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), uma nova Conferência Ministerial está agendada. O futuro da regulamentação multilateral, na matéria que se tornou o centro das relações internacionais contemporâneas, depende em grande parte do que ocorrer nesses quatro dias em Hong Kong.            

A frase acima merece algumas condicionantes. Se Hong Kong fracassar, em termos de avanços na agenda de negociações, isto certamente não levará ao fim do mundo. Entretanto, um novo impasse tornará mais provável o recrudescimento de batalhas comerciais, dentro e fora do sistema de solução de controvérsias, com o risco inerente de retaliações e do unilateralismo, que tantos danos causam à pretensão de estabilidade no comércio internacional.            

Esta introdução recapitula, brevemente, alguns dos principais pontos da negociação, e tenta descrever o espírito do tempo, um mês antes da conferência de Hong Kong. Conforme se verá, não há expectativa quanto a grandes avanços, e os mais otimistas esperam simplesmente que pelo menos não haja outro impasse completo, o que poderia comprometer definitivamente a agenda.            

Para isto, uma parte inicial descreve brevemente a evolução do sistema multilateral, desde Bretton Woods, e as conferências posteriores a de Marraqueche. Em seguida, apresenta-se uma reflexão sobre as fontes da atual desconfiança entre os negociadores, e os pontos de impasse. Finalmente, indicam-se alguns fatores, positivos e negativos, que podem influenciar a sistemática de negociações, no futuro próximo. 

A evolução sistema multilateral do comércio             

A história do sistema multilateral do comércio remonta, neste século, ao encontro de Bretton Woods, no final da II Guerra Mundial, quando os países vencedores buscaram instituir órgãos reguladores da economia internacional. Ao término daquele encontro, houve consenso quanto à necessidade de: (a) um fundo monetário, que pudesse resguardar as economias nacionais contra crises cambiais (o FMI); (b) um banco que financiasse a reconstrução européia e o desenvolvimento (o BIRD ou Banco Mundial); (c) uma organização internacional que regulamentasse os fluxos comerciais (a OIC).            

Os eventos que se seguiram acabaram por confirmar a criação e implementação do BIRD e do FMI. Quanto à Organização Internacional do Comércio, a política interna norte-americana, que havia levado ao Congresso uma maioria republicana, impediu sua aprovação. E a criação de uma organização em matéria comercial, sem a participação dos EUA seria impraticável, em virtude do peso deste país no comércio mundial, já em 1947.            

Diante disso, aprovou-se o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), um conjunto de normas direcionadas inicialmente para a redução das tarifas alfandegárias no comércio internacional.[1] Sem que se houvesse constituído uma organização internacional, o GATT servia como um amplo foro de negociações, cujos pilares eram a cláusula da nação mais favorecida e o princípio do tratamento nacional.            

As reduções tarifárias passaram a ser negociadas em rodadas periódicas, que envolviam um número crescente de Estados e de comércio afetado. Ao mesmo tempo, outras matérias, sobretudo relacionadas às barreiras não tarifárias, passaram a ser objeto de negociação. Ao final de trinta anos (após a Rodada Tóquio), o GATT compunha um conjunto considerável de normas, abrangendo diversos problemas do comércio internacional, e com uma prática consolidada de negociação e de solução de controvérsias, através de um sistema arbitral (os painéis).            

Entretanto, maculavam o GATT algumas limitações sistêmicas, que reduziam o grau de segurança jurídica. Estes problemas foram invocados quando se iniciou a rodada de negociações no Uruguai, em 1986. Prevista para durar três anos, a Rodada Uruguai somente terminou em 1994, com resultados impressionantes, inclusive a criação, finalmente, de uma organização destinada à regulamentação comercial, a OMC, que iniciou suas atividades em 1 de janeiro de 1995. Na estrutura da OMC, o órgão decisório máximo é a Conferência Ministerial, que deve se reunir a cada dois anos, e pela qual se decidem os temas mais relevantes para a Organização.            

Para o final de 1999, previa-se o lançamento de uma nova rodada de negociações, a ser iniciada em Seattle (EUA). A idéia tinha uma base concreta: avolumaram-se as reclamações dos países em desenvolvimento em relação ao sistema multilateral do comércio, sobretudo pela percepção de que reformas estruturais e liberalização comercial não implicaram melhoria da qualidade de vida e crescimento econômico, ao menos no curto prazo. Como se sabe, a Conferência em Seattle resultou num impasse, e não se logrou seu objetivo principal, que seria a estipulação de uma pauta para as negociações.            

Após algum tempo de indecisão, finalmente se realizou uma nova Conferência Ministerial em novembro de 2001, em Doha, no Catar. Os ataques terroristas de setembro de 2001, paradoxalmente, permitiram certo consenso na reunião, que discutiu a agenda para as próximas negociações comerciais multilaterais, a partir de um draft elaborado pela Secretaria da OMC. Uma Declaração Ministerial foi extraída nas últimas horas de negociação, que estabeleceu a agenda para as futuras regulamentações da OMC.         

A Declaração Ministerial de Doha propunha uma agenda abrangente, que implicaria negociações que se estenderiam por cinco anos. A Declaração indicava que esta seria uma Agenda para o Desenvolvimento, e que os interesses dos países mais pobres seriam levados em consideração.            

Muitas dessas boas intenções arrefeceram nos anos seguintes, no momento de discutir os textos a serem negociados. A partir de 2002, os Estados Unidos adotaram uma postura unilateral, que levou a retrocessos na concessão de subsídios agrícolas, na aplicação de salvaguardas e na implementação de algumas obrigações. A Europa continuou aferrada aos indecentes subsídios que concede a seu setor agrícola, e que representam uma barreira visível às pretensões liberalizantes do mundo em desenvolvimento.            

Em conseqüência, pouco havia se avançado quando da Conferência Ministerial de Cancún, no final de 2003. De novidade durante Cancún, houve a articulação de países em desenvolvimento, capitaneados por Brasil e Índia, no Grupo dos 20 (G-20, cujo número na realidade varia ao sabor do tema ou das pressões contrárias). O fracasso do encontro engendrou acusações mútuas de intransigência, chegando-se à conclusão de que o alargamento da agenda (para incluir novos temas, como concorrência) era uma pretensão pouco realista. Outra conseqüência foi o novo adiamento para o final da rodada de negociações - claro estava que as pretensões iniciais do cronograma de Doha dependeriam de um consenso político, inexistente nos anos que se seguiram. 

As promessas não cumpridas            

A dificuldade em alcançar vontade política, nas negociações multilaterais, está diretamente relacionada com as dificuldades políticas internas, uma vez que os efeitos do comércio internacional se tornam mais perceptíveis para os Membros da OMC. De um lado, descobre-se que a correlação entre expansão comercial e desenvolvimento econômico é bem menos direta do que apregoavam os economistas liberais. Efeitos positivos do comércio são, sim, sentidos em boa parcela do mundo em desenvolvimento, mas estes efeitos não são uniformes nem totalmente previsíveis.            

Ao mesmo tempo, o custo de implementação dos acordos da OMC demonstrou ser desproporcional para os países de menor desenvolvimento relativo. Esses países, para quem o conceito de propriedade intelectual ou de liberalização de serviços era apenas uma abstração, tiveram que enfrentar custos decorrentes da institucionalização de regras que pouco compreendiam.            

De outro lado, o livre comércio é que demonstrou ser muito mais abstrato na realidade do que nos acordos escritos. Para os países em desenvolvimento, o maior grau de ceticismo deriva da experiência de ver o discurso do livre comércio ser utilizado em vão, por uma Europa ou por um Japão que se aferram a barreiras agrícolas, e pelos Estados Unidos, que aumentam indecentemente os subsídios em produtos nos quais o mundo em desenvolvimento é muito mais competitivo.            

O grau de ceticismo e desconfiança é perceptível nos corredores da OMC. Daí que mesmo novos acordos que teoricamente beneficiariam o mundo em desenvolvimento (como regras para facilitação do comércio) são recebidos com frieza, por aqueles que imaginam haver alguma nova armadilha escondida por detrás das boas intenções.

Evolução recente             

Apesar do fiasco em Cancún, ou quem sabe em razão deste fiasco, o ano de 2004 testemunhou um pequeno passo. No verão de 2004, os Membros da OMC chegaram a um acordo quanto a um quadro para o futuro das negociações.[3] Embora vago em alguns pontos fundamentais, o programa de trabalho eliminou os novos temas (os denominados temas de Cingapura), mantendo apenas a negociação sobre facilitação ao comércio; esclareceu as obrigações referentes à redução de subsídios agrícolas e à eliminação de subsídios à exportação de produtos agrícolas, além de incluir a referência à questão do algodão (uma reivindicação de grande importância para alguns países africanos).            

Em linhas gerais, o Pacote de Julho indicou que um tema central para os interesses brasileiros - a negociação agrícola - continuaria sobre a mesa de negociações. Neste sentido, a negociação enfoca três perspectivas: a redução de subsídios à produção agrícola, a eliminação de subsídios à exportação e o acesso a mercados.

Sistema e conjuntura             

As experiências desde Marraqueche demonstram que o resultado de uma Conferência Ministerial pode ser surpreendente, uma vez que é influenciado por uma miríade de fatores sistêmicos e conjunturais. Como fatores sistêmicos, pode-se indicar: (a) o alargamento do número de Membros, o que dificulta a coordenação e até a logística dos encontros; (b) o fato de os green rooms (reuniões com os poucos Membros mais importantes) não são mais aceitas pela maioria dos Membros; (c) a possibilidade de que poucos Membros, com diminuto poder econômico, podem bloquear as negociações, ao refutar o consenso; (d) a constatação de que os países em desenvolvimento assumirão um papel mais ativo, inclusive em coalizões de geometria variável; (e) ao mesmo tempo, a inexistência de uma unicidade ideológica entre os Membros (seja o não-alinhamento, ou o liberalismo) torna as posturas negociadoras mais centradas em interesses imediatos ou mercantilistas, o que dificulta a manutenção de coerência na postura negociadora e torna mais latentes os conflitos; (f) a atenção constante por parte da sociedade civil e dos grupos econômicos, e sua influência e pressão sobre os negociadores.           

Estes fatores sistêmicos são minimizados ou influenciados por fatores conjunturais, como a experiência recente das últimas Conferências Ministeriais é farta em exemplificar. Pode-se mencionar neste sentido: (a) a proximidade de um pleito eleitoral, com conseqüente interesse para temas de política comercial, principalmente nos Estados Unidos; (b) o papel do diretor-geral da OMC, e o prazo necessário de seu mandato, para que possa buscar um consenso entre os negociadores; (c) as características pessoais de alguns negociadores, em postos-chave na Organização; (d) eventos inesperados que apontam para consensos ou dissensos - e o 11 de setembro de 2001 é o exemplo marcante neste sentido; (e) a política interna de alguns Membros e a autonomia do Executivo para comprometer-se.            

Sobre este último ponto, deve-se chamar a atenção para a conexão inarredável entre o poder negociador delegado ao presidente norte-americano pelo Trade Act de 2002, e o final previsível para a Agenda de Doha. Na sistemática legislativa norte-americana, o presidente recebeu poderes negociadores do Congresso (o Trade Promotion Authority, anteriormente denominado de fast track). Por esta sistemática, as negociações acordadas pelo presidente serão aprovadas ou não, sem possibilidade de modificações posteriores pelas casas legislativas. Ocorre que este mandato ao presidente expira em junho de 2007. Posteriormente, seria necessário um novo mandato (o que exigiria uma complicadíssima negociação política interna) ou a possibilidade de revisão pelo Congresso (algo a que os demais Membros da OMC não se submeteriam).   

Maio de 2007 torna-se, por isso, o prazo fatal para que Doha dê frutos. E, para que um cronograma viável seja possível, é necessário que Hong Kong seja mais do que outro grupo de acusações mútuas.

[1] O Brasil foi um dos signatários originais do GATT 1947, incorporado legislação brasileira pela Lei n. 313/48.[2]WT/MIN(01)/DEC/W/1.[3] O "pacote de julho de 2004" (Programa de Trabalho de Doha), foi aprovado pelo documento WT/L/579.