Resumo III São Bernardo - Graciliano Ramos

Resumo do Livro São Bernardo de Graciliano Ramos.

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Resumo III São Bernardo - Graciliano Ramos
São Bernardo

SÃO BERNADO

Graciliano Ramos

1) A OBRA:

FICÇÃO E CONFISSÃO

Antônio Cândido

Este grande livro é curto, direto e bruto. Poucos, como ele, serão tão honestos nos meios empregados e tão despidos de recursos; e esta força parece provir da unidade violenta que o autor lhe imprimiu. Os personagens e as coisas surgem nele como meras modalidades do narrador, Paulo Honório, ante cuja personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório,  por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. E o romance é, mais que um estudo analítico, verdadeira patogênese deste sentimento.  De guia de cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta Margarida, Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida, pi£ando escrúpulos e visando o alvo por todos os meios. 

''O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S. Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas breilhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular."  É um verdadeiro homem de propriedade, gente para a qual o mundo se divide em dois grupos: os eleitos, que têm e respeitam os bens materiais; os réprobos, que não os têm ou não os respeitam.

Daí resultam uma ética, uma estética e até uma metafísica. De fato não é à toa que um homem transforma o ganho em verdadeira ascese, em questão definitiva de vida ou morte.  "A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-o sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas." 

O próximo lhe interessa na medida em que está ligado aos seus negócios, e na ética dos números não há lugar parado luxo do desinteresse. '  "(...) espemeei nas unhas do Pereira, que me levou músculo e nervo, aquele malvado. Depois, vinguei-me: hipotecou-me a propriedade e tomei-lhe tudo, deixei-o de tanga."  "(...) levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos é cinqüenta mil-réis. Não tive remorsos."  Uma só vez age em obediência ao sentimento de gratidão, recolhendo a negra que o alimentou na infância e que ama com a espécie de ternura de que é capaz. Ainda aí, porém, as relações afetivas só se concretizam numericamente:  "A velha Margarjda mora aqui em S. Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda.

Custa-me dez mil réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu." Com o mesmo utilitarismo estreito analisa a sua conduta:  "A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro." Até quando escreve, a sua estética é a da poupança:  "É o processo que adoto: extrajo dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço."  Fora das atitudes consistentes em adquirir ou conservar bens materiais, não apenas o senso moral, mas o próprio entendimento baralha e não funciona.  A aquisição e transformação da fazenda S. Bernardo leva, todavia, o instinto de posse a complicar-se em Paulo Honório, com um arraigado sentimento patriarcal, naturalmente desenvolvido - tanto é verdade que os modos de ser dependem em boa parte das relações com as coisas.  ''Amanheci um dia pensando em casar.'' (...) Não que estivesse amando, pois não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar (...) O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bemardo." 

 A partir desse momento, instalam-se na sua vida os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do livro. Com efeito, o patriarca à busca de herdeiro termina apaixonado, casando por amor; e o amor, em vez de dar a demão final na luta pelos bens, se revela, de início, incompatível com eles. Para adaptar-se, teria sido necessário a Paulo Honório uma reeducação afetiva impossível à sua mentalidade, formada e deformada.. O sentimento de propriedade, acarretando o de segregação para com os homens, separa, porque dá nascimento ao medo de perdê-la e às relações de concorrência. O amor, pelo contrário, unifica e totaliza. Madalena, a mulher, - humanitária, mãos-abertas - não conceba a vida como relação de possuidor e coisa possuída.

Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade, o sentimento incompreensível de participar na vida dos desvalidos, para ele simples autômatos, peças da engrenagem rural. Quando casa, aos quarenta e cinco anos, já o ofício criou nele as paixões correspondentes, que o modelaram na inteireza do egoísmo.  ''Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo duma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste."    A bondade humanitária de Madalena ameaça a hierarquia fundamental da propriedade e a couraça moral com que foi possível obtê-la. O conflito se instala em Paulo Honório, que reage contra a dissolução sutil da sua dureza.  "Descobri nela manifestações de ternura que me sensibilizaram (...) As amabilidàdes de Madalena surpreenderam-me. Esmola grande."    "Percebi depois que eram apenas vestígios da bondade que havia nela para todos os viventes."  A solução do conflito é o ciúme, que mata a mulher.

Até então, ninguém fazia sombra a Paulo Honório; agora, eis que alguém vai destruindo a sua soberania; alguém brotado da necessidade patriarcal de preservar a propriedade no tempo, e que ameaça perdê-la. O senhor de S. Bernardo reage pelo ciúme, expansão natural do seu temperamento forte e, ainda, forma ora disfarçada, ora ostensiva, do mesmo senso de exdusivismo que o dirige na posse dos bens materiais. Ciúme que aparece, às vezes, como eco de costumes primitivos, de velhos raptos tribais, de casamentos por compra a referverem no sangue.

Nessa luta, porém, não ha vencedores. Acuada, brutalizada, Madalena se suicida. Paulo Honório, vitorioso, de uma vitória que não esperava e não queria, sente, no admirável capítulo XXXVI, a inutilidade do esforço violento da sua vida.  ''Sou um homem arrasado (...) Nada disso me traria satisfação (...) Quanto às vantagens restantes - casas, terras, móveis, semoventes, consideração de políticos etc. - é preciso convir em que tudo esta fora de mim. Julgo que me desnorteei numa errada (...) Estraguei minha vida estupidamente (...) Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos.

Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo."  Portanto, ao contrario de Caetés, que se horizontaliza na mediania dos personagens, São Bernardo é centralizado pela erupção duma personalidade forte e esta, a seu turno, pela tirania de um sentimento dominante. Como um herói de Balzac, Paulo Honório corporifica uma paixão, de que tudo mais, até o ciúme, não passa de variante. Em Caetés, qualquer um poderia ter agido como João Valério, na mesma mediocridade de sentimento e atitude. Ninguém, em São Bernardo, poderia agir como Paulo Honório, pois ninguém possui a flama interior, graças à qual pode sobrepor-se à adversidade. Vencendo a vida, porém, ficou de certo modo vencido por ela; imprimindo-lhe a sua marca, ela o inabilitou para as aventuras da afetividade e do lazer. Neste estudo patológico de um sentimento, Graciliano Ramos - juntando mais um dado à psicologia materialista esposada em Caetés - parte do pressuposto de que a maneira de viver condiciona o modo de ser e de pensar.

 "Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte A desconfiança é também uma conseqüência da profissão." Não se trata, evidentemente, do resultado mecânico de certas relações econômicas. Uma profissão, ou ocupação qualquer, é um todo complexo, integrado por certos impulsos e concepções que ultrapassam o objetivo econômico.

E este todo complexo - como aprendemos nos romances de Balzac - vai tecendo em torno da pessoa um casulo de atitudes e convicções que se apresentam, finalmente, como a própria personalidade. Em Paulo Dono- rio, o sentimento de propriedade, mais que simples instinto de posse, é uma Disposição total do espírito, uma atitude complexa diante das coisas. Por isso engloba todo o seu modo de ser, colorindo as próprias relações afetivas. Colorindo e deformando. Uma personalidade forte, nucleada por paixão duradoura, - avareza, paternidade, ambição, crueldade - tende a extremar-se, em detrimento do equilíbrio do espírito.  "Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado.

Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes os nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes”.O seu caso é dramático porque há fissuras de sensibilidade que a vida não conseguiu tapar, e por elas peneira uma ternura engasgada e insuficiente, incompatível com a dureza em que se encouraçou. Dai a angústia desse homem de propriedade, cujos sentimentos eram relativamente bons quando escapavam à sua tirania, e descobre em si mesmo estranhas sementes de moleza e lirismo, que é preciso abafar a todo custo. 

"Emoções indefiníveis me agitam - inquietação terrível, desejo doido de voltar, de tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, há esta hora. Saudade? Não, não é isto: é antes desespero, raiva, um peso enorme no coração”.Sendo romance de sentimentos fortes, São Bernardo é também um romance forte como estrutura psicológica e literária. Longe de amolecer a inteireza brutal do temperamento e do caráter de Paulo Honório nos dissolventes sutis da análise, Apresenta-o com a maior secura, extraindo a sua verdade interior dos atos, das situações em que participa.

E a concentração no tema da vontade de domínio permite dar-lhe um ritmo psicológico definido e relativamente simples nas linhas gerais, a despeito da profundidade humana que se desprende.  Dois movimentos o integram: um, a violência do protagonista contra homens e coisas; outro, a violência contra ele próprio. Da primeira, resulta S. Bernardo-fazenda, que se incorpora ao seu próprio ser, como atributo penosamente Elaborado; da segunda, resulta S. Bernardo-livro-de-recordações, que assinala a desintegração da sua pujança. De ambos, nasce à derrota, o traçado da incapacidade afetiva.

O primeiro movimento ganha corpo na volúpia da construam material em que se realiza enquanto homem, acrescentando a si os bens em que lhe parece residir o bem supremo; e, por meio de enumerações curtas e precisas, grava no leitor a paisagem humanizada, os elementos que lhe juntou pelo trabalho: o açude com as plantas aquáticas, o descaroçador e a serraria, movidos com a energia fornecida por ele; as culturas bem tratadas, o gado de raça. Tudo, numa palavra, que, vindo sobrepor-se à fazenda decadente que soube arrebatar aos maus proprietários, perpassa discreta mas necessariamente em cada página, como suporte do seu modo de ser e legitimação dos seus atos. Por isso justificou-se ai liquidações sumárias de vizinhos incômodos, a corrupção de funcionários e jornalistas, a brutalizarão dos subordinados.  "Uma fazenda como São Bernardo era diferente."

 Não se podia comparar a qualquer outra empresa, pois era o prolongamento dele próprio; concretizava a sua vitória sobre homens e obstáculos de vário porte, reduzidos, superados ou esmagados. E assim percebemos o papel da violência, que voltada para fora é vontade e constrói destruindo. Mas vimos que a este primeiro movimento se entrelaça outro: voltada para dentro, a violência é dissolução, e destrói construindo. Caracteriza-se efetivamente pela volúpia do aniquilamento espiritual, pelo cultivo implacável do ciúme, que não é senão uma forma de exprimir a vontade de poderio e recusa o abrandamento da rigidez. Certa  "... tarde, no escritório, uma idéia indeterminada saltou-me na cabeça, esteve por lá um instante quebrando louça e deu o fora. Quando tentei agarrá-la, ia Longe.

”O fato é que consegue agarrá-la, plantando-a dolorosamente no pensamento e dela extraindo a causa final da sua desgraça. Nesse processo de autodevotamento pelo ciúme, e a dúvida anula a construção anterior, percebe a vacuidade das realizações materiais, nega o próprio ser, que elas condicionam. Intervém então o elemento inesperado: Paulo Honório sente uma necessidade nova, - escrever - e dela surge uma nova construção: o livro em que conta a sua derrota. Por ele, obtém uma visão ordenada das coisas e de si; no momento em que se conhece pela narrativa, destrói-se enquanto homem de propriedade, mas constrói com o testemunho da sua dor a obra que redime. E a inteligência se elabora nos destroços da vontade. O próprio estilo, graças à secura e violência dos períodos”.

Curtos, em que a expressão densa e cortante é penosamente obtida, parece indicar essa passagem da vontade de construir à vontade de analisar, resultando um livro direto e sem subterfúgio, honesto ao modo de um caderno de notas.  Aqui não há mais, como em Caetés, influências diretoras, jeito de exercício. Há um processo estilístico em maturidade, revelando o grande escritor na plenitude. Dos recursos. A aprendizagem laboriosa do volume anterior deu todos os frutos: narração, diálogo e monólogo fundem-se numa peça harmoniosa e sem lacunas, onde cada palavra ou conceito, obtidos nas altas temperaturas da inspiração e lavrados pelo senso artístico, perfazem as unidades inimitáveis, cujo efeito sobre nós procuramos inutilmente explicar. Veja-se um exemplo desta síntese, em que sentimos a presença, não mais separável, dos elementos apontados em Caetés: caracterização do personagem pelo exterior; progressão psicológica do diálogo, obtida por notações breves e certeiras; conhecimento do espírito pela situação:

- "Por que foi esse atraso, seu Ribeiro? Doença?

 O velho esfregou as suíças, angustiado;

 - Não senhor. É que há uma diferença nas somas. Desde ontem procuro fazer conferência, mas não posso.

 - Por quê, seu Ribeiro?

 E ele calado.

 - Está bem. Ponha um cartaz ali na porta proibindo a entrada às pessoas que não tiverem negócio. Aqui trabalha-se. Um cartaz com letras bem grandes. Todas as pessoas, ouviu. Sem exceção.

 - Isso é comigo? disse D. Glória esticando-se.

 - Prepare logo o cartaz, seu Ribeiro.

 - Perguntei se era comigo, tornou D. Glória diminuindo um pouco.

 - Ora, minha senhora, é com toda a gente. Se eu digo que não há exceção, não há exceção.

 - Vim falar com minha sobrinha, balbuciou D. Glória reduzindo-se ao volume ordinário."

 Caso elucidativo é o da paisagem. Não há em São Bernardo uma única descrição, no sentido romântico e naturalista, em que o escritor procura fazer efeito, encaixando no texto, periodicamente, visões ou arrolamentos da natureza e das coisas. No entanto, surgem a cada passo a terra vermelha, em lama ou poeira; o verde das plantas; o relevo; as estações; as obras do trabalho humano: e tudo forma enquadramento constante, discretamente e ferido, com um senso de oportunidade que, tirando o caráter de tema, dá significado, incorporando o ambiente ao ritmo psicológico da narrativa. Esse livro breve e severo seixa no leitor impressões admiráveis.

 "Casou-nos o padre Silvestre, na capela de S. Bernardo, diante do altar de S. Pedro.  Estávamos em fim de janeiro. Os paus-d'arco, floridos, salpicavam a mata de pontos amarelos; de manhã a serra cachimbava; o riacho, depois das últimas trovoadas, cantava grosso, bancando rio, e a cascata em que se despenha, antes de entrar no açude, enfeitavas de espuma.  Quando viu os arames da iluminação, o telefone, os moceis, vários trastes de metal, que Maria das Dores conservava areados, brilhando, D. Glória confessou que a vida ali era suportável.  - Eu não dizia?

 Ofereci-lhe um quarto no lado esquerdo da casa, por detrás do escritório, com janela para o muro da igreja, vermelho. O muro está hoje esverdeado pelas águas da chuva, mas naquele tempo era novo e cor de carne crua. Eu e Madalena ficamos no lado direito - e da nossa varanda avistávamos o algodoal, o prado, o descaroçador com a serraria e a estrada, que se torce contornando um morro."

Se a percepção literária do mundo sensível aparece aqui refinada, é igualmente notável o progresso verificado nos mecanismos do monologa interior, gênese dos sentimentos e evocação da experiência vivida. A narrativa áspera de um homem que se fez na brutalidade e hesita ante a confissão vai aos poucos ganhando contornos mais macios, adentrando-se na pesquisa do próprio espírito, até Atingir uma eloqüência pungente, embora freada pelo pudor e a inabilidade em se exprimir de todo, tão habilmente elaborada pelo autor.

O capítulo XXXI, em que desfecha não apenas o seu drama íntimo, mas o da pobre Madalena, que se mata, é porventura o encontro ideal das linhas de construção da narrativa - desde o amadurecimento da autoconsciência até a primeira noção do seu fracasso Humano, numa seqüência admirável em que se vêm unir a paisagem e a rotina de trabalho na fazenda; o significado latente do diálogo, as entrelinhas cheias de ecos e premonições. E o capítulo XIX - um dos mais belos trechos da nossa prosa contemporânea - pode citar-se como ponto alto daquela mistura de realidade presente e representações evocativas, que vimos esboçar-se em Caetés e, surgindo Tão depuradas nesta historia rude, mostram que o autor conseguiu inscrevê-la na categoria pouco acessível das obras-primas.

  1. DOIS ESTUDOS FUNDAMENTAIS

NARRATIVA E BUSCA

João Luiz Lafetá

 Após a morte de Madalena, Paulo Honório tenta retomar os ritmos anteriores de sua vida, lançando-se ao trabalho, mas logo esfria o entusiasmo, e a lembrança da mulher morta impõe-se ao seu espírito, Entediado, vagueia pela casa de forma. Inconseqüente, sem saber direito o que fazer, perdido em "intermináveis passeios, de um lado para o outro". Um a um os moradores mais chegados vão abandonando -oi Dom Glória, depois Seu Ribeiro, e enfim o Padilha - o Luís Padilha que era a imagem completa da submissão e da subserviência e que desaparece para juntar-se aos revolucionários.  Com a revolução, o mundo de Paulo Honório descaminha de forma definitiva: "O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício, E o outro, grande, era uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, estrupício muito maior". A vitória da revolução traz-lhe problemas com a propriedade. Reacendem-se antigas questões de limites, seu crédito é cortado, os preços dos produtos caem, S. Bernardo transforma-se numa fazenda abandonada.

Os amigos, que o freqüentavam regularmente, são obrigados a afasta-se, e ele fica sozinho, com seus intermináveis passeios. É, enfim, o mundo à revelia, fora de seu controle. "E os meus passos me levavam para os quartos, como se procurassem alguém.''  Nesta Última frase do capítulo 35 o estilo revela a impotência do herói, A sinédoque se engasta na estrutura ação/personagem, mostrando que o comando dos atos foi perdido por Paulo Honório: não é ele quem anda em quarto, mas são suas pernas que o levam. O desnorteamento é paralelo à perda do mando.

Entramos agora numa outra etapa, a vida atual de Paulo Honório. Em contraste com a narrativa do passado, o tempo que se instala agora traz problemas diferentes e, em conseqüência, provoca modificações no conteúdo e na composição do livro. Embora o romance mantenha do começo ao fim uma extraordinária unidade estilística (muito visível em vários planos, da escolha do léxico à construção sintática das frases), sua composição geral se altera levemente, o bastante, entretanto, para imprimir a São Bernardo. Uma dimensão nova. 

A duplicidade temporal - existem representados o tempo do enunciado (os eventos Que ocorreram na vida de Paulo Honório) e o tempo da enunciação (o momento em que se escreve o livro) - está,ligada ao problema do ponto de vista narrativo. O romance é narrado em primeira pessoa, por um eu-protagonista que, distanciado no tempo, abrange com o olhar toda sua vida e procura recapitulá-la, contando-a para si e para nós, leitores. É este distanciamento que lhe dá uma pseudo-onisciência, concomitante à existência do olhar abrangente, capaz de determinar os momentos importantes de sua evolução. Este procedimento é responsável por boa parte da objetividade que, como vimos, ressuma por toda a narrativa.

Não é, entretanto, o único responsável, pois a objetividade nasce - como também já vimos - da atitude que caracteriza o narrador em face de tudo que Acontece-lhe. Na verdade, existe uma conjugação funcional dos dois procedimentos: o conhecimento amplo dado pelo distanciamento temporal funde-se à caracterização do personagem-narrador e os dois juntos criam a postura objetiva que dá o tom do romance, Neste momento, todavia, entramos no presente da enunciação e o distanciamento desaparece. Por outro lado, o caráter ativo de Paulo Honório está emperrado, paralisado pela derrota definitiva que foi a morte de Madalena,

É forçoso que os procedimentos técnicos se modifiquem e a narrativa ganhe uma textura diferente, A linguagem seca do tempo do enunciado cede lugar à lamentação elegíaca do tempo da enunciação, e o ritmo rápido da narrativa é substituído pelos compassos mais lentos de uma reflexão problematizada, difícil e tortuosa: "Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado, Não estou acostumado a pensar, levanto-me, chego à janela que deita para a horta".  A verdadeira busca começa onde termina a vida de Paulo Honório.

A busca Verdadeira, entenda-se, a procura dos verdadeiros e autênticos valores que deveriam reger as relações entre os homens. A vida terminou, o romance começa. O romance, segundo Lucas, é a história da busca de valores autênticos por um personagem problemático, dentro de um universo vazio e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida, Ora, só neste instante o herói se torna problemático, o universo surge cônico vazio e degradado, o sentido da vida desaparece. Antes, Paulo Honório fora um personagem coeso e forte, movendo-se em um mundo de objetivos claros e (ainda que ilusório) repleto de significado: a propriedade.

O suicídio de Madalena desmascara a falsidade do sentido e problematiza tudo. Agir para quê? - pergunta-se ele. "Nesse movimento e nesse rumor haveria muito choro e muita praga”.Paulo Honório abandona a ação e volta-se sobre si mesmo, buscando na memória de Sua vida o ponto em que se desnorteou, "numa errada", Nesse debruçar-se, o estilo se tinge de lirismo e a objetividade épica fica abalada. É preciso assinalar que o fato de o romance estar narrado na primeira pessoa não é gratuito nem inconseqüente, mas deixa suas marcas na composição da narrativa.

O estatuto do “narrador onisciente’’ (intruso ou não) difere sensivelmente dessa posição aqui adotada, na qual um eu-protagonista, aproveitando-se da distância, nos conta sua história. Não que seja impossível falar de si mesmo com objetividade (na medida em que possa existir realmente objetividade) - coisa que Paulo Honório demonstra, aliás, de forma cabal no decorrer do livro. Mas, no instante em que o tempo da enunciação começa a ser representado, notamos imediatamente a infiltração dos signos da subjetividade, a irrupção do monólogo interior, o abalo do ponto de vista pseudo-onisciente. Esse processo se instala”.

Um pouco antes, no decorrer mesmo do tempo do enunciado, quando o ciúme retira a segurança do narrador e o faz duvidar do que vê: "Será? Não será?" Ou mais adiante, no capítulo 29: ''Os meus olhos me enganavam. Mas se os olhos me enganavam, em que me havia de fiar então?”É certo que permanecem no romance, muito bem delimitados, Os dois níveis de representação, e o leitor percebe de Maneira clara o que é real e o que é deformação provocada pelo ciúme.

São Bernardo mantém sempre uma objetividade que o torna diferente de certos romances contemporâneos, nos quais os planos da memória, da imaginação e da realidade se confundem e se embaralham. Nem por isso, entretanto, a objetividade deixa de ser questionada de várias maneiras. Uma delas é a marcação do tempo, que vimos atrás ser feita de forma obsessiva e precisa, e que agora parece escapar ao domínio do narrador: ''Uma pancada no relógio da sala de jantar. Que horas seriam? Meia? Uma? Uma e meia? Ou metade de qualquer outra hora? (...) Segunda pancada no relógio. Uma hora? Uma e meia?

Só vendo. (...) Ah, sim, ver as horas. Empurrava a porta, atravessava o corredor, entrava na sala de jantar. Sempre era alguma coisa saber as horas''. Se a capacidade de controlar o tempo estava ligada atrás à capacidade de ação e domínio, neste momento a incerteza simboliza a impotência e insegurança a que está reduzido o narrador. Simboliza, em última análise, sua oscilação diante do mundo que já não pode reduzir à objetividade da medida exata, que já não pode controlar. Mas a subjetividade penetra mesmo, de forma avassaladora, quando começa a ser apresentado o tempo da enunciação, o instante em que Paulo Honório escreve. O belíssimo capítulo dezenove, colocado no centro do romance, embaralha de fato consciência e realidade, memória e presente, objetividade e subjetividade.

Como afirma Lucas, a mais humilhante impotência da subjetividade manifesta-se menos no combate contra estruturas sociais vazias do que no fato de ela estar sem forças diante do curso inerte e contínuo da duração. Paulo Honório escreve seu livro e busca o sentido de sua vida. Através da escritura faz emergir um mundo reedificado e cruel, repleto de corujas que piam agourentas, de rios cheios, atoleiros e "uma figura de lobisomem''. O que surge é afinal o seu retrato: penetrando dentro de si mesmo arranca um mundo de pesadelos terríveis, de signos da deformação e da monstruosidade. Um mundo objetivamente real acaba revelando-se, através da subjetividade. Mas é, por outro lado, um mundo alheio a Paulo Honório, um universo que anda indiferente à sua vontade.

O tempo histórico continua a decorrer, à sua revelia: "O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me".  A objetividade da representação é atingida pela subjetividade do narrador, mas ambas acabam interpenetrando-se, compondo uma unidade dialética. O sujeito poético, que se emancipa das convenções da representação objetiva, confessa ao mesmo tempo a própria impotência, a prepotência do mundo reedificado que volta a Apresentar-se no meio do monólogo.

O recurso ao monólogo interior, portanto, ajuda a compor a busca de Paulo Honório. E é através dela que surge o mundo de S. Bernardo, São Bernardo romance, tentativa de encontrar o sentido perdido e encontro final e trágico consigo mesmo e com a solidão: “E vou ficar às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e” Descanse uns minutos “. Com estas palavras, o romance se fecha, mostrando a vitória da reedificação e a derrota total do herói, que é incapaz de mexer-se, modificar-se. Penso em outro personagem, de outro romance: Ah, o que eu não entendo, isso é que é chama de me matar... -me lembrei dessas palavras. Mas palavras que, em outra ocasião, quem tinha falado era Zé Bebelo, mesmo".